Ordenação

Tipo de Verbete

Filtros

Áreas de Expressão
Artes Visuais
Cinema
Dança
Literatura
Música
Teatro

Período

A Enciclopédia é o projeto mais antigo do Itaú Cultural. Ela nasce como um banco de dados sobre pintura brasileira, em 1987, e vem sendo construída por muitas mãos.

Se você deseja contribuir com sugestões ou tem dúvidas sobre a Enciclopédia, escreva para nós.

Caso tenha alguma dúvida, sugerimos que você dê uma olhada nas nossas Perguntas Frequentes, onde esclarecemos alguns questionamentos sobre nossa plataforma.

Enciclopédia Itaú Cultural
Música

O Bonde de São Januário

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 10.06.2024
1940
Parceria entre Wilson Batista (1913-1968) e Ataulfo Alves (1909-1969), o samba “O Bonde de São Januário” é gravado por Cyro Monteiro (1913-1973)  no disco Victor, com acompanhamento do regional e coro da RCA Victor, em 1940. No carnaval de 1941, repete o sucesso dos três com “Ó Seu Oscar”, vencedor do concurso de música popular na categoria samb...

Texto

Abrir módulo

Histórico

Parceria entre Wilson Batista (1913-1968) e Ataulfo Alves (1909-1969), o samba “O Bonde de São Januário” é gravado por Cyro Monteiro (1913-1973)  no disco Victor, com acompanhamento do regional e coro da RCA Victor, em 1940. No carnaval de 1941, repete o sucesso dos três com “Ó Seu Oscar”, vencedor do concurso de música popular na categoria samba, promovido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no ano anterior. Em consonância com o discurso oficial do Estado Novo, a letra de “O Bonde de São Januário” é um elogio ao trabalho e ao trabalhador:

Quem trabalha é que tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar
O Bonde São Januário
Leva mais um operário
Sou eu que vou trabalhar.

Anedota recorrente em torno da composição é a de que a letra original, vetada pelo DIP, seria “leva mais um sócio otário”, e não “operário”, como consta na gravação – o que carece de fontes que o comprovem. Outra versão, é a de que, por meio da irreverência popular (talvez do próprio Wilson Batista, flamenguista fanático), a música recebe uma paródia:

O Bonde São Januário
leva um português otário
pra ver o Vasco apanhar.

Não por acaso, o estádio do Vasco da Gama, mais conhecido por São Januário, é palco de inflamados discursos cívicos e patrióticos proferidos por Getúlio Vargas (1883 -1954) aos “trabalhadores do Brasil”, nas celebrações do dia 1º de Maio.

A ideologia trabalhista permeia diversas composições populares do período, seja pela censura do regime por meio do DIP, seja por “orientações” e premiação de músicas que exaltam valores ufanistas e moralistas, visando à pedagogia política e mobilização das massas. Indiretamente, estas medidas são formas de cooptar os compositores a servir aos propósitos do Estado Novo, num momento em que este busca legitimação junto à massa de trabalhadores dos centros urbanos, colocando-se no papel de “doador” dos direitos trabalhistas. De caso de polícia, o trabalhador passa a ser, pelo discurso trabalhista, “sócio” do governo, no projeto do “Brasil grande”.  

A figura do malandro, prestigiado nos anos 1930 como espécie de anti-herói, que usa de expedientes para evitar o trabalho, é substituída pelo “malandro regenerado” nos anos 1940. Assim, o mesmo Wilson Batista, que em 1933 compõe “Lenço no Pescoço”:

Eu passo gingando
Provoco e desafio
Eu tenho orgulho
Em ser vadio,

atraído pelo prêmio de 15 contos de réis, afirma em “O Bonde de São Januário”:

Antigamente eu não tinha juízo
Mas hoje penso melhor no futuro (...).

Para a escritora Cláudia Mattos (1982), o engajamento de vários sambistas no programa ideológico do Estado Novo não se trata de adesão ética e política, mas de postura oportunista e artificiosa. A prática dos compositores contradiz o discurso da canção, pois eles não exercem um trabalho formal, apesar de nesta época já haver a figura do músico profissional. Malandramente, exercem um ofício que anda de mãos dadas com a boemia. Da mesma maneira, o nacionalismo e o trabalhismo na música popular não são apenas produtos da ação do Estado Novo, mas estratégia desenvolvida por jornalistas, entusiastas do Carnaval, e pelos próprios sambistas, em busca de reconhecimento do samba como gênero representativo da cultura popular. A necessidade destes grupos pode ser explicada pelo fato de a música popular se apresentar como possibilidade de ascensão social, por meio de direitos autorais e apresentações dos artistas.

Nota-se também que o perfil desta letra é exceção à trajetória dos dois compositores. Ataulfo, mais ligado a poesias de teor lírico e romântico, e Wilson, um cronista e criador de tipos suburbanos. Data do mesmo ano do lançamento de “O Bonde de São Januário” a gravação do samba “Acertei no Milhar”, parceria de Wilson com Moreira da Silva (1902-2000), no qual a primeira reação do sambista narrador, ao descobrir que ganhou 500 contos, é dizer “não vou mais trabalhar”.  

A letra da música traz outro aspecto ambíguo, pois ao mesmo tempo em que o sujeito se confunde à massa de trabalhadores no bonde (mais um operário, fazendo uma ação que parece se repetir diariamente), ele se diferencia pelo passado da malandragem. Expressa também os impasses da condição do malandro que se transforma em trabalhador: ele se desloca no espaço urbano, sem que isto represente uma mudança em sua classe ou melhoria de vida, apesar do tom otimista da letra:

Graças a Deus
Sou feliz
Vivo muito bem
A boemia não dá camisa a ninguém.

Ele dificilmente ocupa o lugar do burguês, continuando a morar no barracão. Comparada com a parceria anterior entre Ataulfo e Wilson, “Ó Seu Oscar”, fica evidente que, para a visão malandra de mundo, o trabalho braçal se traduz em cansaço e frustração:

Fiz tudo para ter seu bem-estar
Até no cais do porto eu fui parar
Martirizando o meu corpo noite e dia
Mas tudo em vão
Ela é, é da orgia.

Ao substituir o malandro orgulhoso dos anos 1930 pela figura do malandro regenerado, “O Bonde de São Januário” fornece matéria para a sobrevivência dessa linhagem, em nova conformação. Eliminados os tempos fortes da melodia, a síncopa do samba gera um efeito de deslocamento de sentido, de modo que sentenças como “a boemia não dá camisa a ninguém” soem de maneira ambígua ao ouvinte, mais irônicas que afirmativas. A impressão é reforçada pelas frases gaiatas do arranjo de metais. A malandragem, assim, resiste dentro da própria estrutura formal da música, em que se registra a curiosa incongruência entre letra, melodia e ritmo, cujo andamento alegre alude mais à festa e ao carnaval, momento de ruptura do trabalho.

Fontes de pesquisa 7

Abrir módulo
  • ALZUGUIR, Rodrigo. Wilson Baptista. O samba foi sua glória! Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.
  • MATTOS, Claudia Neiva de. Acertei no milhar: malandragem e samba no tempo de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
  • NAPOLITANO, Marcos. A síncope das idéias. A questão da tradição na música popular brasileira. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2007. 159p.
  • PARANHOS, Adalberto. Entre o trabalho e a orgia: os vaivéns do samba nos anos 1930 e 1940. Música Popular em Revista, Campinas, ano 1, v. 1, p. 6-29, jul./dez. 2012.
  • PEDRO, Antonio. Samba da Legitimidade. 1980. 157 p. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), São Paulo, 1980.
  • SEVERIANO, Jairo; MELLO, Zuza Homem de. A canção no tempo: 85 anos de músicas brasileiras (vol. 1: 1901-1957). São Paulo: Editora 34, 1997. (Coleção Ouvido Musical).
  • WISNIK, José Miguel. “Algumas questões de música e política no Brasil”. In: Sem receita: ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004. p. 197-211.

Como citar

Abrir módulo

Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo: