Sobrevivendo no Inferno
Texto
Sobrevivendo no Inferno, lançado em dezembro de 1997, é o quarto disco do grupo de rap Racionais MC’s. O trabalho é o primeiro do quarteto lançado pelo selo do grupo, Cosa Nostra, com mais de 1 milhão de cópias vendidas. A primeira faixa do disco é uma versão para “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben Jor (1942), do disco Solta o Pavão (1975), regravada por Caetano Veloso (1942), em 1975, e Fernanda Abreu (1961), em 1992. Essa é a única regravação registrada pelos Racionais MC’s em sua carreira. Além da referência a Ben Jor, uma constante em toda a carreira do grupo, o disco apresenta vários samples (trechos extraídos e reeditados) de músicas gravadas por artistas de soul e funk norte-americanos, como “Ike’s Rap II”, de Isaac Hayes (1942-2008), em “Jorge da Capadócia”, “Slipping Into the Darkness”, do grupo War, em “Capítulo 4, Versículo 3”, e “Easin’in”, de Edwin Starr (1942-2003), em “Diário de um Detento”, que teve a maior parte de seu vídeoclipe gravado dentro da Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru).
O trabalho desenvolve uma tendência presente no disco anterior, Raio X Brasil (1993), de trabalhar com letras extensas. Das 12 músicas do disco, oito têm mais de seis minutos de duração e duas delas, “Tô Ouvindo Alguém me Chamar” e “Fórmula Mágica da Paz”, ultrapassam dez minutos. Essa característica, incomum no rap, valoriza o discurso do grupo e apresenta uma narrativa inovadora sobre o cotidiano da periferia, em histórias contadas com riqueza de detalhes.
Sobrevivendo no Inferno é o primeiro trabalho dos Racionais MC’s com referências a textos bíblicos. Já na capa do disco, ilustrada por uma cruz em fundo preto, há uma frase do Salmo 23, Capítulo 3: “refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça”. A música “Capítulo 4, Versículo 3”, além do título, traz versos como:
E a profecia se fez como previsto
1997 depois de cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais, capítulo 4, versículo 3.
O arranjo da música é pontuado por uma voz feminina que canta a palavra “aleluia” no refrão, trecho extraído da canção “Pearls”, [gravada pela cantora pop britânica Sade (1959), de 1992] e termina com o som de um sino de igreja.
A crítica social, presente em discos anteriores, é o foco do grupo. Antes da faixa “Capítulo 4, Versículo 3”, Primo Preto, amigo e então produtor do grupo, vocifera estatísticas sobre a violência policial contra o jovem pobre e a marginalização do negro na sociedade:
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial.
A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras.
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros.
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo.
“Tô Ouvindo Alguém me Chamar” narra, em primeira pessoa, as reflexões de um personagem envolvido com o crime:
Agora é tarde, eu já não podia mais.
Parar com tudo, nem tentar voltar atrás.
Mas no fundo, mano, eu sabia.
Que essa porra ia zoa minha vida um dia.
Me olhei no espelho e não reconheci.
Estava enlouquecendo, não podia mais dormir.
Na produção da faixa, há um elemento que pontua toda a música e faz parte da narrativa: ao longo de mais de 11 minutos de duração, um ruído de equipamento hospitalar sugere um batimento cardíaco constante. No fim da música, o barulho acelera e indica a morte do personagem. O ouvinte apenas deduz, isso pois a letra não faz menção a este desfecho.
A música “Diário de um Detento”, composta por Mano Brown (1970) em parceria com o ex-detento Josemir Prado (apelidado Jocenir), é o destaque do disco. A letra, inspirada em um diário de Jocenir, relata o massacre do Carandiru. Episódio em que a polícia militar executa 111 presidiários, em 1992, após uma rebelião na Casa de Detenção de São Paulo (desativada em 2002). Com sete minutos e 31 segundos de duração, a letra não repete nenhum verso ou estrofe e faz uma crítica contundente à postura da polícia e do estado, com referência explícita ao então governador de São Paulo, Luiz Antônio Fleury Filho (1949): “Ratatá, Fleury e sua Gangue / Vão Nadar Numa Piscina de Sangue”. Mano Brown conhece Jocenir em uma de suas visitas ao Carandiru e volta pra casa com algumas páginas escritas pelo presidiário em seus cadernos. São estas anotações que inspiram a letra de “Diário de um Detento”. Em 2001, o ex-detento lança um livro de mesmo nome sobre o massacre do Carandiru. O sucesso da música resulta na premiação de seu clipe nas categorias “rap” e “escolha da audiência” no Video Music Brasil, da MTV, em 1998.
“Mundo Mágico de Oz”, de Edi Rock (1970), e “Fórmula Mágica da Paz”, de Mano Brown, assemelham-se por contrapor versos que descrevem uma realidade dura com refrãos que expressam sonho de mudança por meio de um elemento mágico. A primeira aborda a dificuldade de um menor envolvido com drogas, que apela à fé para tentar se salvar: “queria que Deus ouvisse minha voz / em um mundo Mágico de Oz”. A outra retrata a vida de alguém sem perspectiva na periferia, mas que não desiste de encontrar uma solução:
Eu vou procurar, sei que vou encontrar, eu vou procurar,
Eu vou procurar, você não bota mó fé, mas eu vou atrás
(Eu vou procurar e sei que vou encontrar)
Da minha Fórmula Mágica Da Paz.
A produção do disco privilegia timbres e batidas que criam uma tensão permanente, sintonizada com o discurso do disco. A exceção é “Em Qual Mentira Vou Acreditar?”, com base instrumental dançante e letra mais descontraída. Mesmo com referências a abordagens policiais, a música de Edi Rock narra os passos de um personagem à procura de diversão na vida noturna e suas experiências nesse percurso.
Sobrevivendo no Inferno marca uma nova repercussão da obra dos Racionais MC’s. Antes deste trabalho, a mensagem do grupo é dirigida às pessoas que se identificam com o cotidiano retratado nas letras: o público de periferia. A partir de 1997, no entanto, o grupo atrai atenção maior dos jovens de classe média e da grande mídia. O jornal Folha de S.Paulo, por exemplo, publica pelo menos quatro textos sobre Sobrevivendo no Inferno entre novembro e dezembro de 1997. No entanto, isso não interfere na decisão do grupo de não conceder entrevistas sob a alegação de que o conteúdo delas é distorcido pelos meios de comunicação.
Fontes de pesquisa 5
- CARAMANTE, André. Eminência Parda. Rolling Stone Brasil. São Paulo, n. 39, dez. 2009.
- CARAMANTE, André. Os Quatro pretos mais perigosos do Brasil. Rolling Stone Brasil, São paulo, n. 86, nov. 2013.
- GARCIA, Walter. Diário de um Detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, Arthur (Org.). Lendo Música - 10 Ensaios Sobre 10 Canções. São Paulo: Publifolha, 2007.
- SÁ, Xico. Racionais Fazem Canudos da Periferia. Folha de S.Paulo, São Paulo,13 nov. 1997.
- ZENI, Bruno. O Negro Drama do Rap: entre a lei do cão e a lei da selva. Revista Estudos Avançados: Instituto de estudos avançados, da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 18, n. 50, 20 fev. 2004.
Como citar
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SOBREVIVENDO no Inferno.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra68761/sobrevivendo-no-inferno. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7