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Cinema

Como Era Gostoso o Meu Francês

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 23.04.2018
1971
Realizado em 1971 por Nelson Pereira dos Santos (1928), Como Era Gostoso o Meu Francês insere-se em um contexto em que filmes históricos e/ou baseados em obras literárias reconhecidas são incentivados pelo regime militar. É também um momento em que os cineastas cinema-novistas buscam maior diálogo com o mercado e o público. Nelson Pereira, que j...

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Realizado em 1971 por Nelson Pereira dos Santos (1928), Como Era Gostoso o Meu Francês insere-se em um contexto em que filmes históricos e/ou baseados em obras literárias reconhecidas são incentivados pelo regime militar. É também um momento em que os cineastas cinema-novistas buscam maior diálogo com o mercado e o público. Nelson Pereira, que já havia filmado Azyllo muito louco (1970) em Parati, Rio de Janeiro1, retorna à cidade para nela reconstituir a aldeia Tupinambá, cenário de Como Era Gostoso o Meu Francês. Trata-se de um lugar relativamente isolado à época, em função do difícil acesso e, por isso, garante ao realizador certa tranquilidade: ali ele pode trabalhar longe das perseguições vividas pela classe artística em capitais como São Paulo e Rio de Janeiro2. O filme baseia-se em relatos de práticas canibais realizadas por índios tupis, descritas em crônicas e cartas de viajantes europeus que estiveram no Brasil no século XVI, como o soldado alemão Hans Staden (1510-1576)3, o sapateiro francês Jean de Léry (1534-1611)4, e presentes nas gravuras de Theodoro De Bry (1528-1598)5.

A narrativa se passa no Brasil do século XVI e tem como protagonista um francês, Jean [Arduíno Colasanti (1936-2014)], personagem inspirado em Jean de Léry, membro de uma missão que chega à França Antártica, colônia estabelecida por Nicolas de Villegagnon (1510-1571) na Baía da Guanabara. No filme, Jean e alguns integrantes do grupo rebelam-se e são condenados à morte.  A nado, Jean consegue escapar e chegar ao continente. Ele é então capturado por índios tupiniquins, amigos dos portugueses. Depois de um ataque dos tupinambás, amigos dos franceses, Jean é feito prisioneiro por eles, mas os tupinambás acreditam que ele é português e o condenam à morte. Enquanto espera a execução, tem o direito de ficar com a mulher do chefe da tribo, Seboipepe [Ana Maria Magalhães (1950)]. Passadas oito luas, ele será morto e comido pelos tupinambás.

Apesar do cuidado com as fontes históricas e reconstituições – diálogos em língua tupi, escritos pelo cineasta Humberto Mauro (1987-1983); documentos históricos, como gravuras e trechos de testemunhos escritos de viajantes presentes no Brasil quinhentista –, o filme se distancia do discurso oficial. Certas cenas comentam, com ironia, as informações dos documentos de época. Na sequência de abertura, que precede a aparição dos créditos, uma narração em voz over reproduz o que seria uma carta do almirante Villegagnon (1510-1572) a Italo Calvino (1509-1564). Sob o fundo musical de uma composição quinhentista, ouve-se o seguinte trecho: “O país é deserto e inculto. Não há casas, nem tetos, nem quaisquer acomodações de campanha. Ao contrário. Há muita gente arisca e selvagem sem nenhuma cortesia nem humanidade. Muito diferentes de nós em seus costumes e instrução (...) Verdadeiros animais com figuras de homens”.

As imagens que acompanham essa locução mostram índias bonitas e sorridentes, que oferecem comida e outros presentes aos franceses, em gestos claros de gentileza. A carta também diz que “como as mulheres só vêm acompanhadas de seus maridos, a oportunidade de pecar contra a castidade se acha afastada”. Mas a montagem contradiz Villegagnon, e, no plano seguinte, vemos índias caminhando enquanto sacodem as roupas dos europeus, insinuando um encontro sexual. Mais adiante, a carta dá conta da fuga de 26 mercenários da missão de Villegagnon e da posterior captura de quatro deles. Enquanto a narração explica que “no dia seguinte, libertamos um deles de suas correntes, a fim de que pudesse melhor defender sua causa” e que ele “jogou-se ao mar, afogando-se”, as imagens mostram o personagem Jean ser atirado ao mar. Com tal montagem, Nelson Pereira dos Santos comenta a hipocrisia contida no discurso do almirante e, ao mesmo tempo, faz uma 'ponte' com o presente. Não eram raros os casos de presos políticos morrerem 'atropelados' no momento da transferência de uma prisão para outra.

Outro exemplo de ironia está na relação entre Jean e Seboipepe, construída de maneira engenhosa. O filme dá a ilusão ao espectador, acostumado com os códigos de um romantismo de origem europeia, de que a índia se enamora do francês e que, por isso, irá salvá-lo da condenação. Mas, assim como o personagem, o espectador se ilude. A sequência em que ela explica como ele vai morrer, antecipando os gestos da execução e as normas do ritual que ela cumprirá como membro da tribo, constitui o ápice do jogo instaurado pelo filme, em que o conflito entre os pontos de vista europeu e local são postos em cena.

O filme fica pronto no auge da ditadura militar, durante o governo do presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985), impedido de estrear. A censura federal o considera “contrário (...) aos princípios morais e de pudor do povo brasileiro”6. O problema é o “excesso de nus masculinos”7, já que os atores do elenco, caracterizados de índios, aparecem sem roupa. Depois de reuniões com o produtor Luiz Carlos Barreto (1928) e com o cineasta, que concorda em realizar alguns cortes, a censura libera o filme, que estreia em fevereiro de 1972.

Como Era Gostoso o Meu Francês é exibido em festivais como o de Cannes, na Semana dos Realizadores, e o de Berlim, na mostra competitiva. O filme recebe críticas elogiosas, em geral comparando-o com Macunaíma (1969), de Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), pelo tratamento alegórico da temática antropofágica. Em sua estreia brasileira, o crítico Orlando Fassoni (1942-2010), do jornal Folha de S. Paulo, aponta-o como “o melhor filme nacional dos últimos dois anos, entre os já exibidos. É também (...)   aquele que, entre todos os chamados ‘históricos’, mais consegue, em termos de rigor e sinceridade, visualizar o passado que colocou conquistadores e conquistados, colonizadores e colonizados, num clima de relações antropofágicas”8.

A crítica Guiomar Ramos destaca a presença da antropofagia histórica (presente no tom da narração) e da antropofagia cultural (nas sequências em que o material histórico é tratado com sarcasmo, de maneira provocadora)9. Fica claro que, se o diretor baseia-se em documentos europeus, principalmente de Hans Staden, ele não reproduz seu ponto de vista.

O filme recebe diversos prêmios, como o de Atriz Revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte (Apca)  para Ana Maria Magalhães, Melhor Diretor pela Air France, Melhor Produção pelo Instituto Nacional de Cinema.

Notas

1 O longa-metragem Quem é Beta? Pas de Violence entre Nous (1972), de Nelson Pereira dos Santos, também foi rodado em Parati.

2 No depoimento gravado em junho de 2013 para a “Ocupação Nelson Pereira dos Santos”, o cineasta explica porque escolheu Parati como lugar para trabalhar naquele início dos anos 1970, depois de haver realizado Fome de amor (1967) em Angra dos Reis. No vídeo, Nelson Pereira fala de Parati como um “exílio dentro do Brasil”. Disponível em: < http://www.itaucultural.org.br/canal-video/paraty-ocupacao-nelson-pereira-dos-santos-2013/ >. Acesso em: 28 nov. 2015.

3 STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Primeiros registros sobre o Brasil. Tradução Angel Bojadsen. Porto Alegre: L&PM, 2008.

4 LÉRY, Jean de. História de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro/Batel, 2009.

5 O filme também incorpora trechos de documentos escritos por religiosos [José de Anchieta (1534-1597), Manoel da Nóbrega (1517-1570) e André Théve (1502-1590)]; do governador geral do Brasil Mem de Sá (ca.1500-1572); e dos cronistas Pero de Magalhães Gandavo (?-1759) e Gabriel Soares de Souza (1540-1590). Sobre a maneira como esses documentos são integrados ao filme, cf. RAMOS, Guiomar. Um cinema brasileiro antropofágico? 1970-1974. São Paulo: Annablume, 2008. p. 31-32.

6 Proibida fita de Nelson Pereira dos Santos. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 17 ago. 1971. p. 14. Outras informações sobre a relação do filme com a censura estão disponíveis em: < http://www.memoriacinebr.com.br/ResultadoPesquisa.asp?filme=116 >. Acesso em: 13 dez. 2015.

7 Filme continua censurado. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 out. 1971. p. 23.

8 FASSONI, Orlando L. Antropofagia, um grande tema. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 mar. 1972. Ilustrada, p. 3.

9 RAMOS, Guiomar. Um cinema brasileiro antropofágico? 1970-1974. São Paulo: Annablume, 2008.

Fontes de pesquisa 13

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  • CENSURA libera filme nacional. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 nov. 1971. p. 29.
  • FASSONI, Orlando L.Antropofagia, um grande tema. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 mar. 1972. Ilustrada. p. 3.
  • FILME continua censurado. Folha de S. Paulo, São Paulo, 9 out. 1971. p. 3.
  • LOBATO, Ana Lúcia. Nelson Pereira dos Santos: o ponto de vista em Como era gostoso o meu francês. Cinemais, Rio de Janeiro, n. 7, p. 153-173, set.-out. 1997.
  • LÉRY, Jean de. História de uma viagem feita à terra do Brasil, também chamada América. Tradução Maria Ignez Duque Estrada. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro/Batel, 2009.
  • PEÑA, Richard. How Tasty Was My Little Frenchman. In: JOHNSON, Randal; STAM, Robert (Orgs.). Brazilian Cinema. Nova York: Columbia University Press, 1995. p. 191-199
  • PROIBIDA fita de Nelson Pereira dos Santos. O Estado de S. Paulo, São Paulo,17 ago. 1971. p. 14.
  • RAMOS, Guiomar. Um cinema brasileiro antropofágico? 1970-1974. São Paulo: Annablume, 2008.
  • SADLIER, Darlene J. Nelson Pereira dos Santos. Campinas: Papirus, 2003.
  • STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil. Primeiros registros sobre o Brasil. Tradução Angel Bojadsen. Porto Alegre: L&PM, 2008.
  • STAM, Robert. Multiculturalismo tropical: uma história comparativa da raça na cultura e no cinema brasileiros. Tradução Fernando S. Vugman. São Paulo: Edusp, 2008.
  • UMA SAUDÁVEL antropofagia. Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 fev.1972. Ilustrada. p. 3.
  • XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.

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