Nove Noites
Texto
Análise
Nove noites (2002) é o sexto romance publicado por Bernardo de Carvalho (1960), distinguido com o Prêmio Portugal Telecom (2003) e com o Prêmio Machado de Assis conferido ao melhor romance do ano pela Biblioteca Nacional (2003). Essa narrativa explora o recurso da metaficção, ou seja, a elaboração de uma ficção fundada em ficções, expediente que aponta para uma estrutura pós-moderna. Além disso, a obra estabelece um diálogo interdisciplinar entre antropologia, história e jornalismo, mostrando-se uma narrativa de múltiplos interesses, notadamente na deslegitimação dos processos de fundamentação historiográficos.
A narrativa organiza-se por 19 capítulos numerados em cardinal, ora em itálico ora em cursiva romana, marcando-se narradores distintos. Além da estrutura romanesca, Carvalho acrescenta um paratexto intitulado “Agradecimentos”, em que se esclarecem as circunstâncias do texto, isto é, revela-se acerca dos processos metaficcionais: “Este é um livro de ficção, embora esteja baseado em fatos, experiências e pessoais reais. É uma combinação de memória e imaginação – como todo romance, em maior ou menor grau, de forma mais ou menos direta”[1].
O enredo desenvolve-se, em um primeiro momento, por meio de um autor-narrador, provavelmente um jornalista, que levanta dados documentais acerca de um personagem verídico, o antropólogo norte-americano Buell Quain, interessado em etnologia, que provavelmente se suicida aos 27 anos, em 1939, em meio a uma expedição no Tocantins entre os índios krahô. Essa pesquisa é feita 62 anos depois, ou seja, no presente histórico da publicação do livro, de forma metódica e apurada, por meio de cartas, de documentos, de fotos, de testemunhos e de relatos, na tentativa de revelar as circunstâncias e as motivações verdadeiras da morte do antropólogo.
Já, em um segundo momento, paralelamente, há um narrador ficcional, Manoel Perna, que convive com Quain nove noites durante sua estada no Brasil (daí o título do livro), narrado em itálico no corpo do romance. Tal estratégia compõe um gênero híbrido que aponta para a autoficção e a metaficção, criando-se dados inverídicos a partir de pistas verdadeiras da vida do antropólogo, em um texto a meio do caminho entre o romance-reportagem e o romance policial.
As narrativas paralelas e a pesquisa sistemática acerca do etnólogo criam relações com a história e a antropologia do século XX, inclusive ao mostrar o cotidiano e as dificuldades na etnologia durante o Estado Novo (1937) no Brasil. O romance perpassa temas bastante explorados atualmente como identidade, alteridade e sexualidade.
Além disso, o expediente de ficcionalizar a história aponta para uma supremacia do inverídico em detrimento ao documental, já que inverte o propósito comum da pesquisa em extrair dados fundamentados e coerentes de determinado assunto, criando-se possibilidades que não correspondem à verdade histórica, processo comumente usado em romances históricos. Assim, Carvalho logra a criação de um embate entre ficção e realidade de modo a misturar as perspectivas e as conclusões documentais, deslegitimando-as como fontes incontestáveis de conhecimento.
É justamente nessa tensão que os limites da realidade do etnógrafo começam a sobreporem-se à percepção do narrador-pesquisador, que passa a projetar-se na figura de Buell Quain, em um jogo de alteridades transformadas – pela ficção, o que torna o processo mais engenhoso – de sorte a criar uma identificação tão intensa entre o narrador e o etnólogo, que àquele torna-se uma espécie de “outro” desse, apropriando-se da cosmovisão de Quain, deixando entrever todas as suas experiências, angústias e perplexidades, inclusive sobre a sua infância.
A respeito de Nove Noites é possível constatar uma série de estudos acadêmicos, ensaios e resenhas, apontando para a crescente análise da obra. Yara Frateschi Vieira toca no eixo labiríntico da narrativa, que não se deixa decifrar linearmente: “[...] maquinaria destinada a desqualificar fronteiras entre identidades e discursos, dá simultaneamente ao leitor a sensação de estar numa casa de espelhos, cuja montagem inteligente permite criar um ponto simultaneamente central e cego — como se Narciso, afinal, se contemplasse num espelho que não reflete nada”[2]. É justamente a indefinição das situações narradas que faz com que a obra relacione-se coma ideia de “duplo”, além da dificuldade classificatória da narrativa, que oscila entre características do jornalismo e do ambiente policial, porém conseguindo ultrapassá-las no sentido de exceder as funções habituais de cada gênero.
Já Fábio Palmeira Eleutério ressalta o caráter atual da obra de Carvalho ao alinhar-se à tendência metaficcional: “A literatura contemporânea está repleta de novidades; livros sobre a vida de celebridades, autobiografias e biografias, romances feitos na expectativa de virar filmes, e outros encomendados para o cinema [...] mistura de estilos, metaficção e fragmentação do texto. Dentro desse cenário mundial da literatura contemporânea, a literatura brasileira acompanha as tendências do mercado editorial”[3].
Notas
[1] CARVALHO, Bernardo. Nove noites. 1ª edição, São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 169.
[2] VIEIRA, Yara Frateschi. Refração e iluminação em Bernardo de Carvalho. Novos Estudos, nº 70, Nov., 2004, p. 201.
[3] ELEUTÉRIO, Fábio Palmeira. Um dispositivo labiríntico: As identidades em Nove noites, de Bernardo Carvalho, p. 85-86.
Fontes de pesquisa 6
- CARVALHO, Bernardo. Nove noites. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
- FRANCO, Adenize Aparecida. Labirintos perdidos: ficção contemporânea em trânsito nos romances de Bernardo Carvalho e Francisco José Viegas (2000-2010). Tese (Doutorado em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
- MOURA, Flávio. A trama traiçoeira de ‘Nove noites. In: Trópico: ideias de Norte e Sul, São Paulo. Literatura. Disponível em: < www.revistatropico.com.br/tropico/html/textos/1586,1.shl >. Acesso em: 22 out. 2014.
- OLIVEIRA, Bruno Lima. “O retorno do autor na literatura contemporânea.” In: Anais do SILEL, v. 3, n. 1. Uberlândia: Edufu, 2013.
- SAKAI, Luiz Guilherme Fernandes da Costa. Denegação e desidentidade: a metaficção historiográfica em Nove Noites, de Bernardo Carvalho. 101f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2013.
- VIEIRA, Yara Frateschi. Refração e iluminação em Bernardo de Carvalho. Novos Estudos, nº 70, Nov., 2004, p. 195-206.
Como citar
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NOVE Noites.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67426/nove-noites. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7