A Bagaceira
Texto
Publicado em 1928 pelo escritor José Américo de Almeida (1887-1980), A Bagaceira é, nas palavras do crítico literário Alfredo Bosi (1936), um “marco da literatura social nordestina”. O romance anuncia questões a serem aprofundadas pelo gênero, na década de 1930, e expõe a influência de modelos literários anteriores, sobretudo o naturalismo. O enredo tem por centro um triângulo amoroso, ambientado no semiárido nordestino. Inicia-se na época da seca de 1898 tem desfecho transposto para 1915.
Tudo se passa no engenho Marzagão, localizado nos arredores de Areia, cidade da zona do Brejo paraibana. O Marzagão pertence a Dagoberto Marçau, que representa os senhores de engenho decadentes, com força política e socialmente brutais. O viúvo recebe seu único filho, o idealista Lúcio, estudante de direito e desejoso de reformas no ambiente rural. A relação entre pai e filho em férias abala-se quando a família do retirante Valentim Pedreira é acolhida no engenho. O motivo é Soledade, filha do agricultor. Recuperada dos efeitos da fome, Soledade revela-se bela e desperta o interesse do jovem. Constrói-se, assim, uma relação que transita entre o romantismo civilizado do rapaz e os caprichos instintivos da garota, sempre acompanhada de perto por Pirunga, seu irmão de criação.
O retorno de Lúcio à cidade e aos estudos coincide com uma mudança de comportamento de Soledade. “A carnadura de relevos ostensivos” de Soledade parecia ao pai e ao irmão de criação da garota “um canteiro de tentações”;1 e não tarda para que descubram sua propensão a um “amor criminoso”.2 A confissão de Soledade de que teria um caso com Manuel Broca, o feitor do engenho, desperta a fúria de Valentim, que fica dividido “entre os dois sentimentos fundamentais do sertanejo – a dignidade da família e o apego à gleba”.3 Opta pela defesa da honra, o assassinato e a prisão. De volta ao engenho, Lúcio reencontra Soledade e decide ser o momento de assumir com ela uma união. Sabendo da prisão, porém não das razões de Valentim, Lúcio conta ao pai suas intenções. Diante da recusa do pai pelo preconceito contra o sertanejo, Lúcio revela ter descoberto a origem familiar de Soledade. A moça é prima de sua mãe por parte de Valentim Pedreira, irmão de seu avô. Diante da revelação, Dagoberto confessa ter identificado na moça traços de sua falecida mulher durante a recepção da família no engenho e escancara o fato de ambos terem se tornado amantes. O feitor assassinado por Valentim era apenas um mensageiro.
Lúcio foge e Pirunga, descobre a verdade sobre o casal de amantes. Visitando o pai na prisão, o rapaz lhe fala sobre o real sedutor de Soledade. Valentim pede-lhe que cuide da vida do senhor para que, uma vez livre, possa consumar sua vingança. Dagoberto e Soledade mudam-se para o Bondó, outra fazenda no sertão. Pirunga vai também e mostra-se fiel ao juramento a Valentim, a ponto de salvar Dagoberto dos perigos do sertão. O senhor de engenho, porém, perde a vida num acidente a cavalo. A morte do amante leva Soledade a desconfiar do irmão. Depois de ameaçá-lo para que confessasse o suposto crime, a garota e seu irmão travam luta corporal em que Soledade cai inerte. Pirunga suspeita que a tenha matado e foge. Volta para Areia onde confessa ter matado a irmã e é preso. A prisão coincide com o interesse renovado de Lúcio, agora senhor do Marzagão, na causa de Valentim. Piruga e Valentim são libertados. Como proprietário, dr. Lúcio Marçau (como será conhecido) implanta a modernidade no engenho e no trato com os homens da terra, que lhe trazem benefícios e nostalgia. Nesse contexto, em 1915, durante forte estiagem, surge no Marzagão uma mulher esgotada acompanhada do filho. Trata-se de Soledade e do irmão de Lúcio. Ambos são acolhidos pelo advogado, sob os protestos dos trabalhadores da terra. Graças à postura modernizadora de Lúcio, estão cientes de seus direitos e contrários à presença dos novos moradores em época de carestia geral, “tinham assimilado todas as fórmulas de emancipação”.4
No que toca ao movimento regionalista, a trama de José Américo de Almeida ainda se mostra incipiente. Diferentemente de autores da década seguinte, como Graciliano Ramos (1892-1953) e José Lins do Rego (1901-1957), o enredo deve-se mais ao motivo novelesco do que à análise social. Esta toma a sociedade do engenho sob uma perspectiva ligada a um naturalismo tardio. O cientificismo escatológico reaparece no distanciamento crítico que o narrador toma das personagens e no impulso analítico que lhes disseca as paixões e a raça, sentimentos reduzidos à função dos instintos. Na mesma chave dá-se a investigação social: sobre a natureza dos sertanejos e dos habitantes do brejo. Ou seja, organização inata de um universo primário – o do Marzagão, tal como cultivado por Dagoberto e integrado à economia de fome do agreste, em que a seca a um só tempo valoriza a cana e degrada o trabalhador.
A prosa de José Américo já revela modernidade linguística e estrutural. A Bagaceira estrutura-se de forma fragmentária: seus capítulos são justaposições de quadros e episódios independentes que encontram unidade nos percursos individuais de cada personagem. Tal fragmentação permite uma onisciência narrativa, que transita pelos diferentes protagonistas, e a pluralidade dos registros linguísticos. É o caso, por exemplo, da recuperação do socioleto sertanejo. Acompanhado de um glossário composto pelo próprio autor, este torna-se referência para a linguística histórica e a lexicografia do português brasileiro. Ao lado destes, destaca-se igualmente a linguagem carregada do narrador, tendendo ora à poesia – com um uso moderno da metáfora –, ora a um cientificismo de toques parnasianos.
À medida que se apropria de diferentes registros literários, passadistas ou modernos, e aponta para um importante capítulo da forma romance no Brasil, A Bagaceira oferece ao leitor uma arqueologia dos modos literários em vigor no país em fins dos anos 1920. Rompe, assim, com modos já desgastados de entendimento da literatura do período.
Notas
1 ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 26. ed. Introdução de M. Cavalcanti Proença e ilustrações de Poty. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988. p. 74.
2 Ibid., p. 74.
3 Ibid., p. 79.
4 Ibid., p. 114.
Fontes de pesquisa 4
- ALMEIDA, José Américo de. A Bagaceira. 26 ed. (introdução de M. Cavalcanti Proença e ilustrações de Poty). Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
- ARAGÃO, Maria do Socorro de. O romance americista. In ARAGÃO, Maria do Socorro de; SANTOS, Neide Medeiros; ANDRADE, Ana Isabel de Souza Leão (Orgs.). Valores Literários de Ontem e de Hoje. João Pessoa: Mídia Gráfica e Editora, 2015.
- BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 32. ed. rev. e aum. São Paulo: Cultrix, 1994.
- LIMA, Elaine Aparecida. A Bagaceira: marco móvel e literário. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2007.
Como citar
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A Bagaceira.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67354/a-bagaceira. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7