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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Garrincha, Alegria do Povo

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 24.02.2016
1962
Em 1962, após retornar de uma viagem de estudos nos Estados Unidos, onde entra em contato com os irmãos Maysles e as técnicas do cinema direto, Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) é convidado pelo produtor Luiz Carlos Barreto (1928) a dirigir um documentário sobre o jogador de futebol Garrincha (1933-1983). Considerando oportuno realizar um fil...

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Histórico
Em 1962, após retornar de uma viagem de estudos nos Estados Unidos, onde entra em contato com os irmãos Maysles e as técnicas do cinema direto, Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) é convidado pelo produtor Luiz Carlos Barreto (1928) a dirigir um documentário sobre o jogador de futebol Garrincha (1933-1983). Considerando oportuno realizar um filme sobre futebol no mesmo ano em que a seleção brasileira conquista a copa do mundo, Barreto e seu associado, o jornalista Armando Nogueira (1927-2010), apostam em Joaquim Pedro para fazer uma longa-metragem na tradição documentarista moderna, na qual negavam-se técnicas tidas como tradicionais - caso das entrevistas e da presença da voz narrativa - em nome de uma câmera que deveria parecer oculta para observar com o máximo de neutralidade os acontecimentos.

Levando-se em consideração as novas tecnologias de filmagem, como as câmeras mais leves e os gravadores que permitem captar com qualidade o som fora dos estúdios, acredita-se na possibilidade de o filme registrar a realidade social da forma mais fiel possível, sem intervenções, em um testemunho direto e objetivo da vida. Apesar de esta proposta - que durante um tempo foi chamada no Brasil de cinema verdade - ser o ponto de partida dos envolvidos em Garrincha, Alegria do Povo, inúmeras dificuldades, como a falta de um gravador adequado para o registro do som nas locações, impediram a plena realização do projeto. Consequentemente, a opção de Joaquim Pedro passa a ser uma estética composta de múltiplos estilos do documentarismo em geral.

Seguindo a sugestão do crítico David Neves (1938-1994), no artigo Garrincha Decalcado?, de novembro de 1964,1 é possível dividir o filme em três partes. Na primeira, o cineasta mobiliza recursos com a finalidade de apresentar, sem abdicar de certo olhar crítico, a vida pública do jogador de futebol. Por vezes ao som de batidas de samba, fotografias e imagens em movimento filmadas com teleobjetiva registram, em crescendo, as jogadas de Garrincha dentro do campo. Seus primeiros passes e movimentos, que logo se transformam em belos gols, são montados juntos aos rostos de torcedores entre a apreensão e a euforia: a câmera, com direção fotográfica de Mário Carneiro (1930-2007), reconstrói detalhes inesperados do espetáculo, captando cenas do time do Botafogo no vestiário, a movimentação da imprensa esportiva e tomadas próximas das pernas de Garrincha em ação. Há nessas sequências de final de campeonato um estilo de transporte do olhar do espectador para dentro do campo e a celebração do jogador como ídolo popular. O tom de exaltação, complementado pela narração de Heron Domingues (1924-1974), sofre um rápido abalo pelas imagens fixas a demonstrar como o sucesso esportivo atrai um outro espetáculo, o do populismo político, aqui representado pelos presidentes Juscelino Kubitschek (1902-1976) e João Goulart (1919-1976) em momentos de afetividade pública com Garrincha.

Apresentada a contemplação na esfera pública, a segunda parte do documentário, cujo início se dá com Garrincha em estúdio expondo certo cansaço com a fama, investe em sua vida particular. Cenas familiares na cidade de Pau-Grande, o futebol com os amigos de infância e os treinamentos no Botafogo, todas ao som de um narrador a insistir que o jogador nunca abandonou suas raízes populares, deslocam o olhar sobre Garrincha do mito ao homem. Nestas sequências, nas quais melhor funciona a visualidade do estilo direto - apesar da ausência das vozes -, o filme focaliza seu protagonista como pessoa comum, o que permite um primeiro processo crítico, de humanização do ídolo, limitado pelos constantes elogios ao caráter do personagem. Ainda neste segundo bloco, seguindo a divisão proposta por David Neves, são apresentas cenas de arquivo com a participação de Garrincha nas vitórias mundiais da seleção brasileira em 1958 e 1962. A euforia da conquista, concentrada principalmente nas cenas do desfile da equipe do Brasil nas ruas do Rio de Janeiro, é mostrada a partir de uma montagem que cola materiais jornalísticos para retomar o comentário crítico ao populismo. Como escreve a pesquisadora Luciana Corrêa de Araújo, em sua tese de doutorado:

[...] as copas se sucedem e a elite dirigente continua a se apropriar dos jogadores e de seu imenso apelo popular [...]. De volta ao Brasil [...], os jogadores passeiam em carro aberto pelas ruas e ganham luxuosa recepção do governador Carlos Lacerda. É bem marcada a intervenção das autoridades no sentido de tomar as rédeas da comemoração.2

No uso da montagem, elabora-se nesta parte do filme críticas à mitificação em torno de Garrincha.

O terceiro bloco, no entanto, marca a radicalização crítica de Joaquim Pedro ao universo do espetáculo esportivo. Deixando de lado seu protagonista e voltando-se para o futebol em geral, a última parte começa com a derrota do Brasil na Copa de 1950. Relembrar ao espectador o sentimento de desgosto provocado pelo anticlímax do espetáculo torna-se artifício de montagem para preparar a exposição, pela voz do narrador, de duas teorias que pensam o futebol como alienação. Uma, de simplificação freudiana, compara a bola ao ventre materno, o que explicaria o ardor pelo qual os jogadores correm atrás dela. Outra, mais próxima da leitura praticada por alguns cineastas políticos daquele período, como é o caso de Nelson Pereira dos Santos (1928) em Rio, Quarenta Graus (1954), avalia o futebol, diversão em massa, como forma de escapismo às frustrações do cotidiano. Nas sequências próximas ao encerramento do filme, Joaquim Pedro assume um estilo documental ilustrativo, desfilando imagens de violência em campo ou do Maracanã esvaziado para comprovar as teorias levantadas. Esbarra, assim, no chamado modelo sociológico, conceito desenvolvido por Jean-Claude Bernardet (1936), no livro Cineastas e Imagens do Povo, para explicar o documentarismo brasileiro que, partindo de uma tese política pré-elaborada, manipula o material cinematográfico para defendê-la. Nada mais distante do desejo de espontaneidade do estilo direto.

Defendido por David Neves no artigo já citado, o hibridismo presente no documentário de Joaquim Pedro - marca deste cineasta - não se resume ao estilo. A abordagem reservada a Garrincha, também híbrida, apresenta um traço de ambiguidade: há o evidente apreço pelo jogador de futebol - o menino de origem humilde e de caráter digno exaltado pelo narrador e pelas imagens do gigante em campo -, mas há a desconfiança do futebol como prática política alienante, de Garrincha recorrentemente flertando com as esferas do poder. Assim, para o bem de uma leitura mais sofisticada, muito significativa de um diretor do cinema novo dividido, naquele momento, entre o apreço e o repúdio às manifestações populares de massa, o filme oscila entre a tristeza e a alegria. Joaquim Pedro, distante de construir uma única visão sobre o futebol, aceita as próprias contradições sobre o assunto e as expõe em um exercício reflexivo de montagem. Não à toa, há na estética do documentário, em seus detalhes, um constante exercício de choque: um médico analisa cientificamente as pernas de Garrincha para, logo depois, a contraposição a seu discurso vir na forma de uma rezadeira; o jogador de futebol, milionário, ainda convive com seus fiéis amigos de infância, cuja remuneração como operários é de um salário mínimo; o peso da teoria sociológica quase desaparece perante as belas imagens de encerramento do filme, quando acompanham-se os preparativos para mais um jogo. Na confluência de estilos e na exposição por vezes contraditória, o cineasta acaba traindo uma tentativa de objetividade primordial para o cinema direto.

Na imprensa brasileira, Garrincha, Alegria do Povo divide opiniões. Nelson Rodrigues (1912-1980), no artigo A Sombra das Chuteiras Imortais, demonstra seu entusiasmo pelo filme:

O verdadeiro documentário é a poesia. Ou o sujeito recria poeticamente as coisas ou naufraga num pires d'água. Eis o meu medo: que ele [o cineasta] nos traísse Garrincha e traísse a poesia. Nada disso. A única traída foi mesmo a sociologia. O Joaquim Pedro é sensível demais, inteligente demais, delirante demais para ser sociólogo. Quer ele queira, quer não, jamais será um idiota da objetividade.3

Alguns críticos, no entanto, se incomodam justamente pelo estilo híbrido, caso de B. J. Duarte (1910-1995),4 Novais Teixeira (1899-1936)5 e Cláudio Mello e Souza (1935-2011). Este último, em texto publicado no Jornal do Brasil, opina que a:

visão de Garrincha e do futebol não corresponde, em termos artísticos, à verdade experimentada pelo torcedor, nas arquibancadas. Uma visão desigual, nascida de perspectivas diferentes e até divergentes, que acaba nos dando a impressão de que há um autor para cada sequência e não um filme e um autor.6

Polêmico em sua época,7 um dos primeiros filmes brasileiros a se aproximar de traços do cinema direto, Garrincha, Alegria do Povo é o único documentário em longa-metragem de Joaquim Pedro. A partir de 1965, com O Padre e a Moça, sua preocupação se concentra no cinema ficcional.

Notas
1 NEVES, David E. Garrincha decalcado?. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1964.
2 ARAÚJO, Luciana Sá Leitão Corrêa de. Garrincha, alegria do povo. In: Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. Tese em ciências da comunicação, ECA/USP, São Paulo, 1999, p. 145.
3 RODRIGUES, Nelson. A sombra das chuteiras imortais. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jun. 1963.
4 DUARTE, B. J. Garrincha, cinema-mentira. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 out. 1964.
5 TEIXEIRA, Novais. Garrincha e mais duas fitas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9 jul. 1963.
6 SOUZA, Cláudio Mello e. Garrincha, alegria do povo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 ago. 1963.
7 Uma sugestão é ler a tese de doutorado de Luciana Sá Leitão Corrêa de Araújo, já citada, na qual a autora investiga em detalhes a recepção da crítica especializada ao documentário de Joaquim Pedro.

Fontes de pesquisa 6

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  • ARAÚJO, Luciana Sá Leitão Corrêa de. Garrincha, alegria do povo. In: Joaquim Pedro de Andrade: primeiros tempos. Tese em ciências da comunicação, ECA/USP, São Paulo, 1999, p. 145.
  • DUARTE, B. J. Garrincha, cinema-mentira. Folha de S.Paulo, São Paulo, 27 out. 1964.
  • NEVES, David E. Garrincha decalcado? O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 nov. 1964.
  • RODRIGUES, Nelson. A sombra das chuteiras imortais. O Globo, Rio de Janeiro, 9 jun. 1963.
  • SOUZA, Cláudio Mello e. Garrincha, alegria do povo. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1 ago. 1963.
  • TEIXEIRA, Novais. Garrincha e mais duas fitas. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 9 jul. 1963.

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