Fragmentos da Vida
Texto
Análise
Fragmentos da Vida (1929), de José Medina (1894-1980) é uma adaptação livre de um conto do escritor norte-americano O. Henry (1862-1910)1. Traz a história de dois vagabundos que vivem de pequenos golpes nas ruas da cidade de São Paulo. Na infância, um deles presencia a morte do pai, um operário da construção civil, que cai de um andaime. Antes de morrer, o pai aconselha a honestidade e o trabalho como únicos valores do homem. Entretanto, passado o tempo, o garoto, agora um vagabundo, procura ser detido pela polícia para não ter que passar o inverno nas ruas. O filme sugere que a prisão funciona quase como um abrigo. Isso se deve certamente aos vínculos de Gilberto Rossi (1882-1971), o fotógrafo, com o governo estadual.
Com esse intento, o vagabundo, junto com o amigo, promove uma série de golpes, mas o acaso sempre oferece uma solução conciliadora. Num restaurante, procura comer sem pagar, mas um cidadão solidário evita que a polícia seja acionada e paga a refeição. Na aventura seguinte, o personagem quebra uma vitrine e confessa o ato ao dono da loja, mas este, duvidando de sua franqueza, procura outro culpado. Novo golpe é ensaiado. Na calçada de uma rua vigiada por um policial, o protagonista enlaça subitamente uma moça que, para sua surpresa, corresponde ao gesto e agradece a abordagem, pois dois homens suspeitos a seguiam ostensivamente. Desconsolado, o vagabundo e seu companheiro continuam a vagar até estarem diante de uma igreja. O vagabundo entra, e o discurso do padre evoca-lhe o último conselho paterno. Sai da igreja emocionado, disposto a se redimir, mas é finalmente detido pela polícia, e por um crime que não cometera. O intertítulo final anuncia seu suicídio.
Esta história de fundo moral, sem um tratamento aprofundado das condições sociais, apresenta uma narrativa avançada. O uso consciente de procedimentos como primeiro plano, movimentos de câmera, paralelismo de ações criado pela montagem e elipse temporal, permite uma consequente continuidade (match-cut)2. O filme se inicia com a imagem de um operário da construção civil trabalhando. Em seguida, um garoto que caminha. A alternância dessas imagens cria um paralelo espacial, que se conclui quando eles se encontram. De cima do andaime, o pai conversa com o garoto que, no solo e de cabeça erguida, observa atentamente. O pai despenca do andaime, os operários acorrem, o garoto chora. O primeiro plano ilustra o sofrimento do pai, que profere suas últimas palavras, ilustradas pelo intertítulo: "Sê sempre honesto, sempre trabalhador... O trabalho abrirá o caminho da honradez..." O primeiro plano do garoto chorando dá lugar ao do pai desfalecendo. Num plano mais recuado, médio, vemos o pai que morreu, o garoto que chora e os operários consternados tirando o chapéu. A tela escurece e surge o intertítulo: "Como se despertasse de um grande sono, a cidade de São Paulo, de um momento para o outro, transformava-se radicalmente, [...]".
Essa sequência ilustra o domínio da continuidade narrativa. A ordem dos planos, que se articulam, criam um espaço ficcional coerente. Além disso, há a sutil elipse temporal, o salto no tempo que não é explicitado por uma menção cronológica. Apenas o intertítulo sobre o desenvolvimento da cidade nos informa que se passaram vários anos.
A incorporação por Fragmentos da Vida de elementos correntes no cinema norte-americano foi comemorada por Guilherme de Almeida (1890-1969), crítico reconhecido por sua severidade com a filmografia nacional. Diz ele, "José Medina é indiscutivelmente por enquanto, o nosso único diretor de verdade". Outro crítico paulista, Octavio Gabus Mendes (1906-1946), também saudou o filme, mas com menos entusiasmo: "(...) muito embora focalize aspectos pouco bonitos de nossa moderna São Paulo, assim mesmo é um filme cheio de peripécias agradáveis". (Cinearte, 11 dez. 1929). O crítico certamente se refere ao tratamento dado aos mendigos, que trafegam por pontos centrais da cidade, como o Parque Dom Pedro, o Edifício Martinelli e o Vale do Anhagabaú. Já o crítico Pedro Lima (1902-1987) projeta no futuro a importância do longa: "Este ano, com A Escrava Isaura exibida no Capitólio e Fragmentos da Vida na sala vermelha do Odeon de S. Paulo, encerra-se o nosso ano cinematográfico. Tão auspicioso para o nosso cinema, como nenhum outro" (Cinearte, 18.dez. 1929).
Suas qualidades narrativas se somam à aspiração progressista da cidade de São Paulo. Segundo Machado, é possível flagrar a vontade de modernização que o filme louva. O tom moral que envolve o discurso sobre os malefícios da vagabundagem é característico da ideologia do trabalho desenvolvida na cidade. Isso aparece nos letreiros que exaltam a vida urbana, a organização social da cidade e a crença em instituições, como a penitenciária do estado, que surge na história como um lugar melhor do que as ruas no inverno. Os planos dos edifícios centrais da cidade, logo após a sequência inicial no Parque D. Pedro II, evocam as imagens de São Paulo, Sinfonia de uma Metrópole, de Adalberto Kemeny (1901-1969) e Rodolfo Rex Lustig (1901-1970).
Medina consegue essa fluência narrativa devido ao rigor com que elabora seus roteiros e à atenção com que vê e analisa os filmes de outros diretores. Ele os estuda, assiste-os diversas vezes, memorizando sequências inteiras. Além de seu talento, Medina conta com a experiência técnica de Gilberto Rossi, hábil cinegrafista e dono da Rossi Filme. O elenco é composto de atores amadores. Os protagonistas, Carlos Ferreira e Alfredo Roussy (pseudônimo de Farid Riskallah), trazem experiência do teatro amador, enquanto que Áurea Auremar, a moça cortejada, realiza sua primeira interpretação. A atuação sóbria dos protagonista se destaca no panorama do cinema brasileiro da época, muito marcado pela grandiloquência dos gestos e pelas maquiagens carregadas. A atuação de Alfredo Roussy imprime realismo ao filme, na medida em que seu sarcasmo diante da vida contrasta com o discurso solene dos letreiros.
O longa é realizado com pequeno orçamento e em pouco tempo. Apenas duas sequências foram filmadas no estúdio Garnier, a do restaurante e a da igreja, ambas com móveis alugados da Casa Teatral. Consta nos anúncios do filme uma "caprichosa sincronização", o que significa uma sonorização no sistema Vitaphone (sistema de gravação sonora em discos)3. Ele é exibido durante três semanas consecutivas no cine Odeon, nas salas Vermelha e Verde. A exibição em um cinema central é um êxito para o cinema brasileiro da época. Finda sua carreira comercial, desaparece até 1954, quando uma cópia é reencontrada em Minas Gerais. É então exibido na 2ª Retrospectiva do Cinema Brasileiro e, no início da década de 1990, restaurado pela Cinemateca Brasileira.
Notas
1 Consta nos letreiros o título do conto Soap. Porém, trata-se certamente de um engano, já que o conto de O. Henry que tem Soapy como personagem é The cop and the Anthem (traduzido no Brasil por O guarda e o hino). Cf. PAES, José Paulo. (org.) Os melhores contos de O. Henry. KAWALL, Alzira Machado (trad.). São Paulo: Círculo do livro, s/d.
2 Match-cut: corte em continuidade. O match-cut indica a correspondência de planos com a unidade de tempo, dos gestos do atores, da posição dos olhares, da luz, dos figurinos e da cenografia. Para uma definição de match-cut e seu significado na evolução da linguagem cinematográfica Cf. XAVIER, Ismail. A continuidade (match-cut) e a montagem paralela no cinema de Griffith. In: BENTES, Ivana. (org.). Ecos do cinema. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
3 Há no acervo da Cinemateca Brasileira uma partitura feita para o filme, de autoria de Lamartine Silva.
Fontes de pesquisa 10
- CINEMATECA BRASILEIRA. Fragmentos da vida - descrição plano a plano. São Paulo, s/d.
- DUARTE, Benedito Junqueira. Fragmentos da vida e o diretor José Medina. Boletim do Festival Internacional de Cinema, fev. 1954.
- DUARTE, Benedito Junqueira. Fragmentos da vida e o diretor José Medina. Boletim do Festival Internacional de Cinema, fev. 1954.
- GALVÃO, Maria Rita. Crônica do cinema paulistano. São Paulo: Ática, 1975.
- LIMA, Pedro. Fragmentos da vida. Cinearte, 18 dez. 1929.
- MACHADO, Rubens. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Dissertação de mestrado. ECA/USP: São Paulo, 1989.
- MIRANDA, Luiz Felipe. Dicionário de cineastas brasileiros. Apresentação Fernão Ramos. São Paulo: Art Editora, 1990, 408 p.
- PAES, José Paulo (org.). Os melhores contos de O. Henry. KAWALL, Alzira Machado (trad.). São Paulo: Círculo do livro, s/d.
- RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe (Orgs). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Senac, 2000.
- XAVIER, Ismail. A continuidade (match-cut) e a montagem paralela no cinema de Griffith. In: BENTES, Ivana (org.). Ecos do cinema. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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FRAGMENTOS da Vida.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67297/fragmentos-da-vida. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7