Lilian M: Confissões Amorosas (Relatório Confidencial)
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Lilian M: Confissões Amorosas (Relatório Confidencial) é o segundo longa-metragem de Carlos Reichenbach (1945-2012), realizado com recursos próprios, somados a sucatas de cenários, objetos de cena e algumas sobras de negativos da Jota Filmes, extinta produtora da qual era sócio, é rodado em dois cenários improvisados nos estúdios da produtora e em diversas locações em São Paulo. Apresenta Célia Olga Benvenutti, atriz de teatro e telenovela, em seu primeiro papel de protagonista no cinema. Para Reichenbach, Lilian M é o primeiro longa-metragem no qual pode e expressar uma visão de mundo pessoal. Ele exerce um controle quase total sobre o projeto: é produtor, roteirista, diretor, operador de câmera, diretor de fotografia e autor da trilha sonora original. Para a montagem, conta com o crítico e escritor Inácio Araújo, que efetua cortes significativos na versão final por exigência da censura1. Por pressão do distribuidor, o filme é lançado comercialmente com o título Confissões Amorosas.
Uma cartela no início anuncia “uma tragicomédia de aventuras”. As primeiras sequências se passam no campo, num sítio rodeado por uma plantação de chuchu, onde Maria vive com os dois filhos e o marido, o lavrador José (Caçador Guerreiro). Sua “aventura” tem início quando abandona a família e segue para a cidade grande com um caixeiro-viajante. Eles sofrem um acidente de carro no meio do caminho, e o caixeiro-viajante morre. Maria chega sozinha a São Paulo. Perdida na metrópole, é presa sem documentos e uma assistente social lhe arruma emprego de doméstica na casa do industrial Braga (Benjamin Cattan, 1925-1994). O dois se tornam amantes, ele a rebatiza como Lilian, nome de sua mãe, e a presenteia com um apartamento para ela morar e para terem seus encontros. Mas Fausto (Washington Lasmar), o filho do industrial, interfere no romance e se instala à força no apartamento. O envolvimento dos três, dada a relação conturbada entre pai e filho, tem um desfecho ruim.
A partir dessa iniciação na vida corrompida e agitada da metrópole, Lilian vai se envolvendo com outros personagens excêntricos. O primeiro é Hartman (Edward Freund), um alemão que financia a repressão militar e gosta de inventar aparelhos de tortura, e cuja relação com Lilian se baseia no sadomasoquismo2. Com o dinheiro que ganha como massagista profissional, somado ao que recebe como recompensa por concordar com as experiências do alemão, Lilian decide comprar terras de Vivaldo Lobo (Wilson Ribeiro), um perigoso grileiro. Desconfiando das intenções de Vivaldo, ela aciona o detetive Shell Scorpio (José Julio Spiewak), que empreende uma longa e inútil perseguição ao vigarista. Lilian só se livrará de Vivaldo com a ajuda de Hartman.
Novamente sozinha, ela conhece o marginal Chico (Lee Bujyja), um bandido tuberculoso que tem os dias contados. Ele apresenta Lilian a Maria Antonieta (Thereza Bianchi), dançarina profissional e cafetina. Passando da prostituição de luxo à do baixo meretrício, Lilian se envolve com Gonçalves (Sérgio Hingst), um dos seus clientes, submisso funcionário público com quem vai morar. Passa a conviver com a irmã de Gonçalves, Lucivalda (Maracy Mello), mulher mórbida e misteriosa. A união não dá certo e Lilian volta para o campo, para os braços do marido. Após uma noite ao lado dele, no entanto, foge novamente. “E ela termina como todos os personagens sem saída do cinema brasileiro. Caminhando por uma estrada vazia. Um dado a mais: Lilian corre"3.
Cineasta de declarada verve cinéfila, Reichenbach afirma que Lilian M se inspira em dois filmes de Shohei Imamura: Segredo de uma Esposa (Akai Satsui, 1964) e Mulher Inseto (Nippon Konchuki, 1963). São também eventualmente citados como inspiração os filmes Alucinação Sensual4 (Kagi, 1959) de Kon Ichikawa, Viver a Vida5 (Vivre Sa Vie, 1962) de Jean-Luc Godard e Insinuante e Pecadora6 (Denki kurage, 1970) de Yasuzo Masumura.
O percurso de Lilian é o contrário do que geralmente acontece na obra de Imamura, do deslocamento da cidade - campo, Reichenbach transporta Lilian da região rural para a metrópole. A inversão de sentidos geográficos não altera a lógica das ações, a vida de Lilian se simplifica e praticamente se resume ao instinto de sobrevivência, como a dos personagens de Imamura.
O filme pode ser visto como um estudo de personagem, desde que se tenha em mente que “estudo”, aqui, tem um sentido mais performático que psicológico, aplicando-se à dramaturgia essencialmente corporal que Reichenbach e sua atriz desenvolvem impulsionados pelas determinações materiais dos diversos meios que Lilian frequenta. Na cena em que ela está chegando a São Paulo, os planos que a acompanham andando nas ruas do centro da cidade realçam sua interação com o espaço. Pessoas comuns circulam normalmente pelas calçadas, passam por Lilian, participam do filme tão somente ao integrar o movimento caótico da metrópole, a respiração desordenada do ambiente urbano. A montagem – que se caracteriza por um estilo ágil e elíptico – salta de um plano a outro sem se prender a uma sequência narrativa de acontecimentos; o que vale é reconstituir o fluxo de sensações da personagem ao ter sua primeira experiência numa metrópole. Lilian se deslumbra com as vitrines, foge de um estranho que tenta assediá-la, se perde em meio à infinidade de letreiros e informações visuais, anda nas ruas repletas de gente. A sequência termina com um plano dela sozinha num viaduto, já à noite, com os carros passando de farol aceso na avenida ao fundo.
O “relatório confidencial” é conduzido pela narração de Lilian, que, entre uma história e outra, aparece em seu apartamento, gravando suas “confissões amorosas” num magnetofone. Assim, depois da sequência de sua chegada a São Paulo, Lilian surge em close-up, olhando para a câmera e contando que, ao fim daquela jornada, pela primeira vez na vida, passou uma noite na cadeia. Ao olhar diretamente para a câmera, ela se dirige ao espectador. Seu olhar mais incisivo se dá no momento em que afirma que dormiu na cadeia “pela primeira vez” (dando a entender que houve outras): é como se ela afrontasse o espectador com essa revelação, de modo a provocá-lo, parecendo lhe dizer que não se importa com seu julgamento. Reichenbach retoma aqui um dos gestos inaugurais do cinema moderno, esse olhar de uma jovem atriz para a câmera7. Interpelando o espectador, o “olhar-câmera” quebra três tabus ao mesmo tempo: “o tabu da mise en scène tradicional, na qual a direção de ator proibia qualquer olhar voluntário para a câmera, lente sagrada e mantida à distância da história como corpo; o tabu do lugar do espectador diante do filme, que devia assumir postura de identificação mas não de participação, desvinculado dos corpos e dos atores que ele vê na tela sem diálogo possível; e o tabu do decoro moral”8, uma vez que a personagem olha para nós justamente no momento em que confessa uma ação condenável pelos bons costumes. Lilian encara o espectador e inicia a história de como foi que, após largar marido e filhos, aventurou-se na metrópole e envolveu-se com morte, prostituição, etc. É uma maturidade moral o que o filme solicita do espectador. Tal plano, ao solicitar do espectador uma maturidade moral, afirma menos a inocência e fragilidade de uma jovem interiorana perdida em São Paulo do que a soberania e consciência que ela tem de seus atos, condensa a relação de franqueza que o diretor mantém com a personagem e que esta repassa ao espectador. Sem exaltar nem reprovar suas atitudes, o filme tão somente dignifica a personagem. Lilian representa a primeira de uma série de heroínas que povoarão o cinema de Reichenbach, como as professoras de Anjos do Arrabalde (1987) e as operárias das Garotas do ABC (2004) e Falsa Loura (2007). O olhar lançado pelo diretor a suas fortes personagens femininas caracteriza-se pela frontalidade e pela ausência de preconceito.
Liliam M estreia em São Paulo no dia 28 de julho de 1975, exclusivamente no Cine Marabá. A repercussão crítica é imediata. Paulo Emílio Salles Gomes escreve que “os defeitos do filme estão na cara, a sua heterogeneidade, aquele episódio final quando dentro da fita exaurida começa outra e muitos outros pontos que se queira salientar. Ao lado disso tudo, entretanto, as qualidades que se encontram são tão agudas e insólitas, indicam tanta personalidade, que por si só obrigam a gente a redobrar o interesse pela carreira de Reichenbach”9. Salvyano Cavalcanti de Paiva aponta uma evolução na obra do diretor, que teria assumido “uma postura crítica de maior importância social [através] de uma linguagem cinematográfica moderna”. Ele elogia a oscilação do tom entre o realismo, a caricatura e o surrealismo. Contestando o lema do filme, conclui: “Uma história de prostituição contada num clima de filme de aventura? Bem mais do que isto: o mundo interior da heroína/vítima de vilanias e sua consciente parceira se fragmenta e ela termina sem concluir, como o próprio filme, o que a impulsiona à degradação física e psicológica”10. Em artigo no qual compara Lilian M a Efigênia dá tudo que tem (1975, Olivier Perroy), Jean-Claude Bernardet (1936) define o que, segundo ele, é uma tendência do cinema paulista em meados dos anos 1970: o esfacelamento da narrativa para expressar uma visão caleidoscópica da vida na metrópole e, mediante a dualidade cidade-campo, “a nostalgia de uma sociedade mais 'calma', mais 'humana'”. “É a velha temática que perpassa a cultura erudita e a cultura popular brasileira desde o século XIX: o mito da 'harmonia' da vida rural em oposição aos 'estragos' provocados pelo capitalismo urbano. Só que nem isso funciona mais. […] O paulista esquartejado não pode mais acreditar nesta ingenuidade. Lilian tenta comprar um sítio, sem sucesso; tenta voltar às suas origens rurais, também sem sucesso: o marido camponês e os filhos não representam mais para ela uma alternativa de vida aceitável”11.
Notas
1. O site oficial de Carlos Reichenbach informa que as cópias de Lilian M disponíveis no Brasil e na Europa preservam a versão original: [http://www.olhoslivres.com/lilian.htm].
2. Hartman é uma alusão à fase mais violenta da ditadura militar no Brasil, e mais especificamente ao empresário de origem dinamarquesa aqui radicado Henning Boilesen, personagem-título do documentário Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski.
3. REICHENBACH, Carlos. Carlos Oscar Reichenbach Filho: depoimento. Filme Cultura, n. 28, p. 73-83, fev. 1978.
4. Idem.
5. Cf. release oficial de Lilian M.
6. Ver Carlão: tudo pelo cinema de autor', Diário de S. Paulo, 27 jul. 1975.
7. Cf. Antoine de Baecque, Cinefilia, pp. 50-54. De Baecque identifica no “olhar-câmera” insistente da atriz Harriet Anderson, ao final de Mônica e o desejo (1952), de Ingmar Bergman, a matriz para o “olhar-câmera” de Jean Seberg no último plano de Acossado (1959), de Jean-Luc Godard, que marcará profundamente a Nouvelle Vague e o cinema moderno como um todo.
8. Ibid, p. 51.
9. GOMES, Paulo Emilio Salles. No arraial da crítica. In: ______. In: Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. Coletânea de textos de Paulo Emilio Salles Gomes. Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado (orgs). São Paulo : Brasiliense, 1986. 401 p. il. (A crítica foi originalmente publicada em Movimento, 25 ago. 1975).
10. PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Confissões Amorosas (Relatório Confidencial). O Globo, Rio de Janeiro, 8 out. 1975.
11. Jean-Claude Bernardet. Cinema em cacos. Movimento, São Paulo, 8 set. 1975.
Fontes de pesquisa 12
- ABREU, Nuno César. Boca do Lixo: cinema e classes populares. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2006.
- BAECQUE, Antoine de. Cinefilia. Invenção de um olhar, história de uma cultura, 1944-1968. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
- BERNARDET, Jean-Claude. Cinema em cacos. Movimento, São Paulo, 8 set. 1975.
- Carlão: tudo pelo cinema de autor. Diário de S. Paulo, São Paulo, 27 jul. 1975 (matéria não assinada).
- Centro Cultural Banco do Brasil. Cineasta de Alma Corsária: 40 anos de Carlos Reichenbach. Curadoria Marcelo Lyra. Rio de Janeiro, 2005.
- FASSONI, Orlando L. A trajetória de Lilian M, da miséria ao luxo. Folha de S. Paulo, São Paulo, 2 ago. 1975.
- GOMES, Paulo Emilio Salles. No arraial da crítica. In: ______. Paulo Emilio: um intelectual na linha de frente. Coletânea de textos de Paulo Emilio Salles Gomes. Organização de Carlos Augusto Calil e Maria Teresa Machado. São Paulo: Brasiliense, 1986. (A crítica foi originalmente publicada em Movimento, 25 ago. 1975).
- LYRA, Marcelo. Carlos Reichenbach - O Cinema como Razão de Viver. São Paulo: Imprensa oficial do Estado de São Paulo, 2004.
- PAIVA, Salvyano Cavalcanti de. Confissões Amorosas (Relatório Confidencial). O Globo, Rio de Janeiro, 8 out. 1975.
- REICHENBACH, Carlos. Carlos Oscar Reichenbach Filho: depoimento. Filme Cultura, n. 28, p. 73-83, fev. 1978.
- SIMÕES, Inimá Ferreira. O imaginário da Boca. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura do Estado de S. Paulo, Centro de Documentação e Informação sobre Arte Brasileira Contemporânea, 1981. (Cadernos Idart 6).
- STERNHEIM, Alfredo. Cinema da Boca: Dicionário de Diretores. São Paulo: Imprensa Oficial; Fundação Padre Anchieta, 2005.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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LILIAN M: Confissões Amorosas (Relatório Confidencial).
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67279/lilian-m-confissoes-amorosas-relatorio-confidencial. Acesso em: 04 de maio de 2025.
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