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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Gaijin, Caminhos da Liberdade

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 20.05.2024
1979
Análise

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Análise
Gaijin, Caminhos da Liberdade o primeiro longa-metragem de Tizuka Yamazaki (1949), é uma realização do Centro de Produção e Comunicação (CPC) e tem financiamento da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme). É considerado o primeiro filme brasileiro de ficção a ter como tema a imigração japonesa no Brasil, pois E a Paz Volta a Reinar, longa-metragem ficcional dirigido por Yoshisuke Sato, em 1955, cujo foco é a tensão vivida pelos imigrantes no período do pós-guerra, nunca chega a ser exibido comercialmente, por ter sido rejeitado pela própria colônia oriental antes do lançamento.

Após um letreiro que caracteriza o filme como "uma homenagem a todos que um dia precisaram deixar sua terra", Gaijin começa com um dia amanhecendo em São Paulo, ao som da sirene de uma fábrica, em 1980. Seguem-se imagens de trânsito e de trabalho acompanhadas por uma cacofonia em que se misturam uma batucada, sons de rádio, fragmentos de conversas, buzinas e arranques de motores. A sequência termina na Liberdade, bairro paulistano de forte presença de japoneses e seus descendentes. Uma das acepções da palavra "liberdade", do subtítulo do filme, alude a esse espaço.

Da São Paulo de 1980, o filme recua ao Japão de 1908, no ambiente empobrecido do período logo após a guerra contra a Rússia. Um cartaz exposto na rua anuncia que o Brasil precisa de imigrantes. As cenas que se seguem apresentam Titoe (interpretada pela atriz japonesa Kyoko Tsukamoto) despedindo-se de familiares e partindo para o Brasil, ao lado do irmão e do marido. O hino nacional japonês, cantado por um coro, e seu relato em voz over acentuam a dramaticidade da interpretação. A história é, em sua maior parte, narrada do ponto de vista dessa personagem.

Os créditos iniciais são apresentados sobre planos da chegada do navio ao porto e do desembarque do grupo de imigrantes em solo brasileiro. Essas cenas, com o cuidado da direção de arte na reconstituição de época e a mobilização de grande número de figurantes, reafirmam a produção diferenciada. A sequência seguinte é ambientada na Bolsa Oficial do Café, em Santos, onde fazendeiros analisam a crise e apontam a necessidade de trocar a mão de obra europeia pela asiática, por considerarem os japoneses "disciplinados e trabalhadores", diferentemente dos italianos e espanhóis, tidos como agitadores. Anuncia-se, assim, a situação adversa que os japoneses enfrentarão, em termos de relação de trabalho, e já colocados em oposição a outros imigrantes.

Os personagens pertencem a classes sociais definidas – de um lado, estão as figuras de autoridade (o político, o fazendeiro exportador, o contador); de outro, os trabalhadores. Estes compõem três grupos – os imigrantes japoneses, os europeus e os brasileiros – que convivem na Fazenda Santa Rosa e se posicionam de forma diferente em relação às autoridades locais.
Os japoneses lamentam as condições de trabalho, mas tentam se adaptar. Europeus e brasileiros representam o contraponto: o italiano Enrico (Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006) se destaca pelo engajamento e pela liderança na luta em defesa dos direitos dos trabalhadores da fazenda, questionando regras injustas e incitando a greve. Julgado subversivo, é deportado.

A produção do filme data do início do período de abertura política no Brasil, época em que o movimento operário encontra-se em ascensão, com força de mobilização para greves e reivindicações da classe. A historiadora Maria Ligia Coelho Prado comenta que "nesse contexto, Gaijin era um filme didático, um filme de combate. A narrativa indireta e segura pretendia provar uma tese, a necessidade da liberdade diante da opressão"1, o que apresenta uma outra acepção do subtítulo "caminhos da liberdade".

Os brasileiros são representados por dois personagens – Ceará (José Dumont), migrante nordestino, e Tonho (Antonio Fagundes (1949), contador da fazenda. Nas sequências em que Ceará interage com os novos trabalhadores, o filme retrata o choque cultural entre japoneses e brasileiros, sobretudo em relação à língua. Duas sequências adquirem grande comicidade e são representativas desse choque cultural, que é também interação: na primeira, Ceará ensina aos japoneses o processo de colheita do café, falando rapidamente e, depois, diante da dificuldade deles em compreender, descreve o processo por meio de mímica; na outra, ensina o português, com seu sotaque nordestino, às crianças japonesas.

Tonho é um personagem em conflito: pela sua função de contador, precisa obedecer às regras dos patrões, mas é sensível às reivindicações dos trabalhadores, e também demonstra um grande encantamento e sentimento de proteção em relação a Titoe.

Yamada, marido de Titoe, contrai uma doença e, na ausência de assistência médica rápida, morre pouco depois do nascimento da filha. Os japoneses, cada vez mais revoltados, decidem fugir da fazenda, sob a liderança de Titoe. A pedido dela, Tonho os auxilia. Delineia-se uma mudança no perfil de Titoe, não mais apenas uma personagem delicada, e, sim, também de combate. Na sequência final, já como operária de fábrica e criando sozinha a filha, ela encontra Tonho na cidade, discursando em uma manifestação operária. Exaltado, ele reivindica sindicatos livres e cobra promessas feitas aos trabalhadores e aos imigrantes. O olhar de admiração dela e a emoção na expressão de Tonho ao reconhecê-la sugerem o desenvolvimento da relação afetiva entre os dois.

Nos créditos finais, a mesma narração de Titoe do início do filme, em voz over, acompanha imagens de intenso movimento de transeuntes numa rua de São Paulo no tempo presente. Planos de pessoas de várias raças que caminham descontraidamente em dia comum, ensolarado, fecham o filme com uma atmosfera de convívio harmônico entre os povos.

Gaijin chega às telas logo após as comemorações dos 70 anos da imigração japonesa, cujo início data do ano de 1908. Trata-se de uma produção diferenciada, com apurada reconstituição de época e a presença, no elenco, de três atores japoneses convidados que contracenam com Antonio Fagundes, Gianfrancesco Guarnieri e José Dumont, entre outros atores brasileiros. A direção opta por um estilo clássico, distanciando-se da tradição do cinema novo brasileiro, que busca abordar problemas sociais de uma forma experimental.

Inspirado na vida da avó da diretora, o filme acompanha a chegada de um grupo de imigrantes japoneses, sua difícil adaptação em uma fazenda de café, a convivência com trabalhadores brasileiros e italianos, a revolta com as condições de vida, a fuga e a perspectiva de construir um futuro na cidade. Destaca-se das produções nacionais que apresentam asiáticos e asiático-brasileiros – até então sempre como personagens secundários – por situá-los no centro do debate da etnicidade, como componente crítico da formação da identidade nacional, conforme aponta Jeffrey Lesser2. O título, Gaijin, que significa "pessoa de fora", remete à dicotomia estrangeiro-nativo.

A recepção da crítica e do público é bastante calorosa. Por ocasião do lançamento, um dos primeiros a escrever sobre o filme é Jairo Ferreira, na Folha de S.Paulo, atento aos eventos ligados à colônia japonesa por também ser colunista do jornal São Paulo Shimbun. Para ele, Gaijin, num momento em que "só dá pangaré no páreo, dá um impulso revolucionário ao cinema nacional" pelo caráter poético que escapa "aos bitolamentos e esquematismos"3.

Em artigo, o cineasta David Neves relaciona o filme a Rio Quarenta Graus (1955), de Nelson Pereira dos Santos, na liberdade criativa, no modo como o filme se desdobra em subtemas e na vontade de "esgotar um assunto": "O tempo transformou Gaijin no Rio Quarenta Graus da era da comunicação ou dos anos 80"4.
A adesão do crítico Orlando L. Fassoni ao filme, em resenha na Folha de S.Paulo, de 27 de março de 1980, é total. Considera-o "o primeiro épico do cinema brasileiro (...) uma obra com forte cheiro de saga construída segundo uma visão humaníssima sobre os personagens desenvolvidos, já no roteiro, com extremo vigor. É com rara felicidade que uma estreante consegue formalizar, em termos de linguagem cinematográfica, a sua proposta de prestar uma homenagem não apenas aos primeiros imigrantes japoneses mas a todos os seres que constituem a miscigenação das raças"5.

A primeira exibição de Gaijin ocorre em março de 1980, em sessão especial de uma mostra realizada no Museu de Arte de São Paulo (Masp), e conta com grande público, a maioria pertencente à colônia japonesa da cidade. Em seguida, é lançado no circuito comercial e participa de festivais nacionais e internacionais, recebendo vários prêmios e menções: melhor filme, trilha sonora, cenografia, ator coadjuvante (para José Dumont) e roteiro no Festival de Gramado; Prêmio Air France de Cinema; Margarida de Prata da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de São Paulo para a cenografia; Troféu Curumim pelo Clube de Cinema de Marília; Grande Prêmio Coral e melhor filme de ficção no Festival de Havana; Prêmio George Sadoul no Festival de Paris; menção honrosa na Quinzena dos Realizadores no Festival de Cannes; menção honrosa no Film-Expo-Filmex de Los Angeles; e melhor filme (escolha do público) no Festival de Bruxelas.

Notas
1 PRADO, Maria Ligia Coelho. Gaijin. Os caminhos da liberdade: tempo e história. In: SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge (org.). A história vai ao cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record. p. 103.
2 LESSER, Jeffrey. Uma diáspora descontente: os nipo-brasileiros e os significados da militância étnica (1960-1980). São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 63.
3 FERREIRA, Jairo. Gaijin, a revelação de uma jovem cineasta. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 fev. 1980.
4 NEVES, David. E. Caminhos para a liberdade. Filme Cultura. Rio de Janeiro, jul. ago. set. 1980. p. 64.
5 FASSONI, Orlando L. Folha de S.Paulo, 27 mar. 1980.

Fontes de pesquisa 5

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  • FERREIRA, Jairo. 'Gaijin', a revelação de uma jovem cineasta", Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 fev. 1980.
  • KISHIMOTO, Alexandre e HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Nikkeis no Brasil, Dekasseguis no Japão: Identidade e memória em filmes sobre migrações. Revista USP, n. 79, São Paulo: USP/Coordenadoria de Comunicação Social, set. out. nov. 2008, pp. 144-64.
  • LESSER, Jeffrey. Uma Diáspora Descontente: Os nipo-brasileiros e os significados da militância étnica (1960 - 1980). São Paulo: Paz e Terra, 2008, pp. 105-116.
  • NEVES, David. E. Caminhos para a Liberdade, Filme Cultura, Rio de Janeiro, jul. ago. set. 1980, p. 64-65.
  • PRADO, Maria Ligia Coelho. Gaijin. Os caminhos da liberdade: tempo e História. In: SOARES, Mariza de Carvalho; FERREIRA, Jorge (orgs.). A História vai ao cinema: vinte filmes brasileiros comentados por historiadores. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 99-110.

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