Argila
Texto
Argila é dirigido por Humberto Mauro (1897-1983), estrelado por Carmen Santos e produzido pela Brasil Vita Film, pertencente à atriz. Feito no período em que Mauro já atuava como diretor técnico do Instituto Nacional de Cinema Educativo (Ince), o filme está permeado por estes ideais, o que explica, por exemplo, a participação de Edgard Roquette Pinto na obra.
A produção conta a história de Luciana (Carmen Santos), moça rica e ilustrada que, depois do retiro em razão do luto por seu marido, retoma as atividades como patrona das artes e reabre seu salão no Castelo de Correias, na cidade de Petrópolis. Sua sensibilidade para a arte local não impede que ela receba os amigos que admiram incondicionalmente a cultura europeia. Barrocas (Floriano Faissal 1907-1986) é o mais fervoroso dentre eles, só vê arte na Grécia clássica e tudo o que é brasileiro lhe parece "arte bugre".
Do lado oposto, temos Gilberto (Celso Guimarães), artesão humilde que trabalha em uma fábrica de cerâmica. O patrão não entende o pendor artístico do rapaz e lhe impõe a produção comercial de vasos. Gilberto, além do expediente na fábrica, também se ocupa da decoração de um dos salões de Luciana. Em casa, ele desenvolve estudos sobre a cerâmica marajoara, tornando-se exímio artesão. Certo dia, enquanto trabalha na pintura do teto do salão de Luciana, Gilberto, ao observar a moça rica flertar com o pintor Cláudio (Saint-Clair Lopes), desaba de um andaime. Depois de medicado, passa o período de convalescência sob os cuidados da patroa, que não permite a visita de ninguém, nem mesmo de sua namorada, a singela Marina (Lydia Mattos). O amor nasce de forma velada entre Gilberto e Luciana e, em retribuição, ele lhe oferece um artefato marajoara que encontrara no sítio do Pacoval, no Amapá. O gesto desperta o ciúme de Marina, que alerta o rapaz para os costumes diferentes da patroa.
Tempos depois, Luciana convida Gilberto para uma conferência sobre a cerâmica marajoara. A conferência é proferida por Roquette Pinto, que identificamos por meio de uma uma fotografia no jornal e o registro de sua voz. Convencida sobre a originalidade dessa arte indígena, Luciana compra a fábrica de cerâmica onde Gilberto trabalha e encarrega-o da produção de objetos artísticos. O rapaz trabalha com afinco para produzir arte baseada em motivos marajoara. Luciana segue cada vez mais apaixonada e Gilberto declara seus sentimentos.
Em uma noite de festa, enquanto os ricos conversam sobre literatura e assistem a um bailado exótico, e os trabalhadores dançam, bebem e cantam na festa junina. Pedrinho (Mauro de Oliveira), o irmão de Marina, aproveita para entrar nos aposentos de Luciana e furtar o artefato dado por Gilberto. Antes que a moça se desespere com o roubo, João Antonio (Bandeira Duarte), pai de Pedrinho e de Marina, confessa a Luciana ter sido seu filho o responsável pelo desaparecimento da peça rara. O velho operário, companheiro de Gilberto na fábrica, conta que o filho agira daquela maneira com o intuito de proteger o amor de Marina e Gilberto. Luciana se dá conta de como seu amor pelo artesão poderia trazer a infelicidade da moça e decide se afastar. Quando Gilberto entra em seu castelo para devolver-lhe o artefato roubado, ela simula indiferença e o trata com desdém. Desiludido, ele se demite e parte solitário, para tristeza de ambos. Luciana termina rememorando o idílio e contemplando o objeto marajoara.
No filme, os diálogos são privilegiados e praticamente não há ação. Os planos são quase sempre estáticos, com os personagens falando e se movimentando com lentidão. Não há na obra os procedimentos narrativos que encontramos nos trabalhos anteriores de Mauro. Essa mudança ocorre devido a uma concepção de cinema educativo que o cineasta defendia na época. Ela enfatiza a informação oral, em tom de aula, dada pelo locutor. As imagens apenas ilustram o que está sendo dito, sem muito rebuscamento. Os momentos de mais movimentação fazem parte da sequência da compra da fábrica de cerâmica, cujo tom é documental.
O foco do filme concentra-se nas diferenças entre ricos e pobres, sendo Barrocas e Pedrinho os exemplos mais marcados. O primeiro é chamado de "doutor" e seu pedantismo o torna risível até mesmo para seus amigos. Já Pedrinho é o tipo "puro" que Humberto Mauro trata em seus primeiros filmes, especialmente em Tesouro Perdido. Criança do campo, ele sobe em árvores, caça passarinhos, e seus gestos são sempre impulsionados por uma grande ingenuidade.
Para além dos limites da concepção dramática, a história de um amor impossível entre uma jovem rica e um artesão é pano de fundo para descrever duas visões de mundo antagônicas. A burguesia brasileira desenraizada e citadina, que cultua modelos europeus (a França de Musset, a Grécia de Fideas) e tem costumes modernos é o contraponto para os trabalhadores ligados a valores tradicionais da terra. As paisagens da cidade e do campo reforçam esse contraste. Essa noção dualista da sociedade brasileira parece seguir de perto as orientações de Roquette Pinto e sua concepção cinematográfica1. Neste sentido, a sequência em que Luciana adquire a fábrica de cerâmica, que passa a produzir obras artísticas, aproxima Argila dos pontos de vista defendidos pelo Ince. Na sequência, a música orquestral de Heckel Tavares evolui em consonância com o jogo de imagens que se sucedem: há planos de pedras trituradas por máquinas, a argila é batida, mãos moldam o material em torno mecanizado, mulheres pintam jarros, homem enverniza vaso, várias peças são cozidas em um grande forno e outras são expostas na oficina. Essa sequência rompe com o registro ficcional para destacar o organicidade do trabalho coletivo e a integração entre homem e técnica. Não por acaso, todos esses planos foram extraídos do curta-metragem Cerâmica Artística no Brasil, filme realizado pelo Ince em 1941.
Porém, o apelo à valorização da arte nacional não foi suficiente para convencer o público. Além disso, segundo Almeida, o filme foi boicotado por exibidores que, descontentes com a lei protecionista que favorecia o filme nacional (decreto-lei 4064), descaracterizaram Argila em algumas projeções.
A crítica também não foi favorável, e Nestor de Hollanda afirma que apenas a música e o bailado de Anita Otero se destacam. "Tirando isso, eu não sei o que seria de Argila, porque o argumento é banalíssimo e a direção é troço que se esqueceram de usar"2 O "esqueceram" sugere que o filme foi dirigido por alguém mais que Humberto Mauro. O crítico certamente se refere a Roquette Pinto. Já o crítico Renato Alencar, liquida o filme. Para o articulista, "(...) o argumento está eivado de incoerências". E o filme é "(...) pesadão do princípio ao fim, indigesto, quase sempre pretensioso e ridículo", concluindo que se trata de "(...) mau teatro e péssimo cinema". Não é diferente a reação de Eneas Viany, que lamenta a direção e as interpretações. A voz dissonante vem de Cinearte, que também critica a direção, mas louva a iniciativa.
Notas
1 ALMEIDA, Claudio Aguiar. O cinema como 'agitador de almas': Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Fapesp: Annablume, 1999. Segundo o autor, Roquette Pinto participou do argumento, mas não teve seu nome incluído nos créditos. O trabalho de Almeida foi a principal fonte para os comentários que seguem.
2 HOLLANDA, Nestor de. Mais filme brasileiro. A Cena Muda. 21 abr. 1942.
3 ALENCAR, Renato. Argila. A Cena Muda. 19 mai. 1942.
4 VIANY, Eneas. Argila é meio argiloso. A Cena Muda. 9 jun. 1942.
Fontes de pesquisa 11
- ALENCAR, Renato. Argila. A Cena Muda, 19 mai. 1942.
- ALMEIDA, Claudio Aguiar. O cinema como 'agitador de almas': Argila, uma cena do Estado Novo. São Paulo: Fapesp: Annablume, 1999.
- ANÔNIMO. Argila. Cinearte, n. 560, 1942.
- GONZAGA, Alice, SABOYA, Ernesto. Carmen Santos. Filme Cultura, n. 33, p. 14-29, maio de 1979.
- GONÇALVES, Maurício R. A corporificação da nacionalidade em Argila de Humberto Mauro. Estudos Socine de Cinema, ano VI. São Paulo: Panorama, 2003. p. 37-42.
- HOLLANDA, Nestor de. Mais filme brasileiro. A Cena Muda, 21 de abril de 1942.
- OROZ, Silvia. El discurso de la transgresión femenina en el cine latinoamericano de los años treinta y cuarenta. Objeto Visual, n. 2, p. 6-19, 1995.
- PESSOA, Ana. Carmen Santos: o cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
- PESSOA, Ana. Carmen Santos: sob a luz das estrelas. Cinemais, n. 27, p. 35-107, jan.- fev. 2001.
- SCHVARZMAN, Sheila. Humberto Mauro e as imagens do Brasil. São Paulo: Unesp, 2004.
- VIANY, Eneas. Argila é mesmo argiloso. A Cena Muda, 9 de junho de 1942.
Como citar
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ARGILA.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67270/argila. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7