Guerra Conjugal
Texto
Histórico
Guerra Conjugal (1975) é o quarto longa-metragem ficcional dirigido por Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988). Depois do drama romântico rural O Padre e a Moça (1965), da literatura modernista em Macunaíma (1969) e do teatro histórico brechtiano em Os Inconfidentes (1972), o diretor aborda a comédia burguesa em chave erótica, aventurando-se no terreno da pornochanchada, gênero que no período desfruta de popularidade e é rentável no mercado brasileiro.
O roteiro baseia-se em 16 contos de Dalton Trevisan (1925-), presentes nos livros A Guerra Conjugal (1968), Novelas Nada Exemplares (1959), Desastres do Amor (1968), O Vampiro de Curitiba (1965), Cemitério de Elefantes (1964) e O Rei da Terra (1972). Joaquim Pedro mistura os contos e os reagrupa em três núcleos distintos. O primeiro é formado por Joãozinho e Amália (Joffre Soares (1941-2010) e Carmen Silva (1916-2008)), casal de velhos que não mais se suporta e que troca injúrias diariamente. O segundo núcleo tem como protagonista o Doutor Osíris (Lima Duarte (1930)), advogado que assedia as mulheres que entram em seu escritório e acaba se tornando amante de uma delas, Dona Olga (Ítala Nandi). Completando o elenco principal, Carlos Gregório interpreta Nelsinho, jovem engravatado que visita diferentes mulheres (uma adolescente que vive com a avó cega, uma gorda fogosa, uma perua excêntrica, uma prostituta octogenária) à procura de satisfação sexual e consolo afetivo. As histórias dos três grupos de personagens se intercalam na montagem. Embora as cenas se desenvolvam à semelhança de esquetes - mantendo, portanto, uma certa autonomia -, elas se completam e se correspondem mutuamente, garantindo ao filme uma unidade temática, visual e dramatúrgica.
A narrativa tem como eixo um universo íntimo, concentrando-se nas interações sexuais e afetivas dos personagens. Sob o aparente desengajamento do tema escolhido - "crônicas de psicopatologia amorosa na civilização do terno-e-gravata"1 -, ganha forma uma crítica implícita ao sistema político vigente (a ditadura militar) e ao quadro social e cultural que o acompanham. Não é uma simples comédia de costumes, mas um retrato mordaz da sociedade brasileira, sobretudo da burguesia urbana. Na miséria sexual dos personagens, assim como no sentimento de mal-estar provocado pelo filme, Guerra Conjugal afirma que a violência - já incorporada ao cotidiano, infiltrada na própria vida amorosa das pessoas - adquire formas tão sutis quanto demolidoras.
Essa violência se manifesta, sobretudo, no plano moral e psicológico, conforme exemplificado em uma cena de humor negro, pautada na relação entre o que está em primeiro plano e o que aparece na profundidade de campo. Nela, Osíris e Olga transam no sofá enquanto o cadáver do marido dela jaz inerte na poltrona, ainda na mesma posição em que morreu, vestido de pijama e com o jornal sobre o colo. A princípio focalizados em plano geral, os amantes se deslocam pelo meio da sala e terminam deitados no sofá em primeiro plano, à direita, ao passo que o morto se acha ao fundo, enquadrado na parte central da imagem. Ocupando a porção esquerda do plano, um buquê de rosas orna a mesinha de centro da sala. A mise en scène sugere alto grau de preparação dos movimentos e de marcação de atores e objetos cênicos no espaço. O detalhe das flores demonstra que, como em outros momentos do filme, Joaquim Pedro pensou cuidadosamente cada porção do quadro. As rosas simbolizam tanto o amor (casais de namorados costumam trocar flores) quanto a morte (as pessoas levam flores para os enterros), evidenciando o curto-circuito que o filme estabelece entre as duas instâncias. A situação escabrosa, filmada em plano-sequência, é coroada por um comentário de Olga: "Assim é ainda melhor do que com ele vivo. Pena que não ronque mais... Será que a gente vai sentir falta?". O efeito cômico da fala intensifica a crueldade da cena.
Joaquim Pedro age aqui um pouco à semelhança dos chamados "contrabandistas" de Hollywood2: sua comédia erótica atrai o espectador que pretende assistir a uma pornochanchada ao mesmo tempo em que dá pistas para que ele compreenda um sentido mais profundo embutido no filme. O diretor encontra uma forma de infiltrar suas preocupações políticas num gênero com grande potencial de mercado.
O trabalho intenso com as cores, característica marcante no cinema de Joaquim Pedro desde Macunaíma, possui papel fundamental na construção dramática do filme. Nas casas burguesas mostradas em Guerra Conjugal, as cores beiram o exagero e são uma representação irônica de um certo mau gosto da classe média. Alguns elementos de cenografia se acham no limiar da caricatura, a exemplo do interior totalmente kitsch em que Nelsinho encontra uma de suas amantes (a qual, não à toa, se diz aficionada por decoração). O cenário parece prestes a devorar o personagem - há uma cama em forma de boca, inclusive. Asfixiado pelo ambiente, Nelsinho tem uma crise de asma e não consegue ter relações com a moça. No lar de Joãozinho e Amália, por sua vez, predominam paredes sujas e descascadas, cores desbotadas, móveis encarquilhados. Um ambiente igualmente agressivo, não pelo excesso de cores vivas, mas pela ausência radical delas. A amargura e o ressentimento deixaram sua marca no lugar ao longo dos anos, e isso se torna visível na imagem. Já na casa de Olga, uma série de utensílios e objetos de decoração cafonas caracterizam a burguesia que tirou proveito econômico da "modernidade ilusória" do país - estritamente ligada ao consumismo, assimilando os produtos dos novos tempos porém ignorando o sentido histórico de sua produção. Em Macunaíma, já havia uma crítica à modernização conservadora sob a forma de um comentário satírico ao Brasil urbano no seu aspecto "novo rico".3 Guerra Conjugal prolonga essa reflexão.
O filme estreia em São Paulo no dia 25 de junho de 1975, após ter feito sucesso de público no Rio de Janeiro, onde a bilheteria superou a de Macunaíma, até então seu maior êxito comercial.
O crítico José Carlos Avellar (1936) elogia a expressividade dos diálogos, a maneira como os atores modulam suas vozes "de acordo com as exigências dramáticas de cada fala em particular", algo que ele atribui à filmagem em som direto, que teria a dupla vantagem de "deixar o ator mais à vontade" e associar sua voz às "sonoridades particulares de cada ambiente", aos "pequenos ruídos cotidianos". O segundo elemento importante, para o crítico, é a montagem, que potencializa a violência transmitida pelo diretor: "O som e a montagem do filme não devem ser tomados simplesmente como felizes soluções formais de um problema técnico de narrativa cinematográfica, mas como resultado direto de um desejo específico de mostrar em extensão a violência na sociedade contemporânea".4 Enfocando outros aspectos, Sérgio Augusto salienta o apodrecimento moral da sociedade, que a câmera de Joaquim Pedro teria captado com precisão. Ele compara Guerra Conjugal às pornochanchadas e afirma que "os guerreiros conjugais de Trevisan e Joaquim Pedro [...] assustam mais do que excitam porque são sinistros e sintomáticos de uma constrangedora realidade".5 Para João Carlos Rodrigues, entretanto, o filme carece de humor e de conteúdo crítico, não convencendo nem como pornochanchada nem como obra autoral.6 Na França, o jornal Le Monde7 e a revista Écran trazem críticas positivas sobre o filme. Gérard Lenne comenta os "personagens derrisórios" cujo "pequeno mundo" enseja a representação de "uma pintura cruel, de um humor cortante".8
Notas
1. Assim Joaquim Pedro de Andrade define o filme no pequeno texto contido no release oficial.
2. Diretores como Jacques Tourneur e Howard Hawks, que trabalhavam dentro dos gêneros estabelecidos nos grandes estúdios - faroeste, terror, aventura, film noir, filme de guerra - apropriando-se de seus códigos e convenções para, subvertendo-os interna e sutilmente, provocar uma reflexão ambiciosa sobre temas que extrapolam as funções habituais do cinema de gênero.
3. Cf. Ismail Xavier. Alegorias do subdesenvolvimento. São Paulo: Brasiliense, 1993. p. 156.
4. José Carlos Avellar. "O som e a fúria". In: Jornal do Brasil, 6 de maio de 1975.
5. Sérgio Augusto. "O pecado". In: Veja, 23 de abril de 1975.
6. João Carlos Rodrigues. "O que aconteceu com Joaquim Pedro?". In: Crítica, maio de 1975.
7. Cf. Jean Baroncelli. "La Guerre Conjugale". In: Le Monde, 29 de junho de 1975.
8. Gérard Lenne. "Guerre Conjugale". In: Écran nº 50, setembro de 1976.
Fontes de pesquisa 7
- AMARAL, Sérgio Botelho do. Guerra conjugal: uma batalha de Joaquim Pedro de Andrade. In: GRAÇA, Marcos da Silva. Cinema brasileiro: três olhares. Rio de Janeiro: Editora Eduff, 1997, p. 127-177.
- BENTES, Ivana. Joaquim Pedro de Andrade. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996.
- GARCIA, Estevão. As aventuras de Joaquim Pedro de Andrade no fabuloso mundo das pornochanchadas. In: Contracampo, nº 85, mar. 2007. Disponível em: <http://www.contracampo.com.br/85/artaventurasjpa.htm>. Acesso em: jan. 2011.
- GILI, Jean A. Entretien avec Pedro de Andrade. Écran, nº 50, Paris, set. 1976.
- PIERRE, Sylvie. Joaquim, o maior, e os outros. In: Cahiers du Cinéma, Paris, mai. 1990.
- STAM, Robert. O espetáculo interrompido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
- XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Brasiliense, 1993.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
-
GUERRA Conjugal.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67260/guerra-conjugal. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7