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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

O Viajante

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 14.06.2016
1998
Análise

Texto

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Análise
O Viajante é o décimo longa-metragem de Paulo Cezar Saraceni (1933-2012) e sua terceira e última adaptação da obra do escritor mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968), encerrando a "trilogia da paixão" iniciada com Porto das Caixas (1962) e A Casa Assassinada (1971). O livro homônimo de Lúcio Cardoso que dá origem ao filme estava sendo escrito quando o escritor faleceu, em 1968. O romance inacabado é publicado postumamente, em 1970, por Otávio de Faria (1908-1980), amigo de Lúcio e crítico de cinema e literatura. Três anos depois, Saraceni escreve a primeira versão do roteiro e começa a planejar a produção, procurando locações no interior de Minas Gerais e convidando Sônia Braga para o papel da protagonista. O projeto, entretanto, é adiado - pois Saraceni se dedica à direção de Anchieta, José do Brasil (1976/77). Engavetado por 25 anos,o filme só renasce em 1998, marcando a volta de Saraceni à direção depois do hiato de 10 anos que se seguiu a Natal da Portela (1988). Contando com o esforço de sua esposa, a atriz e produtora Ana Maria Nascimento e Silva, são captados, por meio de leis federais de incentivo à cultura, mais de R$ 3 milhões para realizar O Viajante, e a produção finalmente tem início. As filmagens ocorrem em Tocantis, pequena cidade na porção norte da Zona da Mata mineira.

O Viajante se passa nos anos 1940, época em que Ubá, por contar com o ramal principal do entroncamento de linhas de trem de toda uma região de Minas Gerais, recebia muitos caixeiros-viajantes que lá pernoitavam para depois seguir rumo às cidades vizinhas vendendo produtos de toda espécie. Na primeira imagem do filme, o caixeiro-viajante Rafael (Jairo Mattos) se acomoda num vagão do trem que o levará a Ubá. O trem corta a paisagem do interior de Minas deixando para trás um rastro de fumaça. Ao chegar à cidade, Rafael conhece Don'Ana de Lara (Marília Pêra), mulher de meia-idade, rica viúva de um líder político assassinado e mãe de Zeca (Ricardo Graça Melo), adulto que requer cuidados especiais, pois, além de ser paraplégico, sua saúde mental é frágil. Rafael corteja Don'Ana, estendendo seu assédio a Sinhá (Leandra Leal), menina que saiu de casa, onde era molestada sexualmente pelo padrasto. Ela mora com sua tia Isaura (Mírian Pérsia), esposa de Mestre Juca (Nelson Dantas), marceneiro que fabrica caixões e outros artigos funerários. Mestre Juca apaixona-se por Sinhá e fica obcecado com sua beleza. Don'Ana, por sua vez, entrega-se a Rafael. Ele, porém, envolve-se paralelamente com Sinhá. Mestre Juca, ao vê-la suspirar pelo homem da cidade grande, fica desolado. Dessas paixões cruzadas, cresce um clima de tensão e violência. A atmosfera pacata da pequena cidade é perturbada  por dois assassinatos: no primeiro, Don'Ana leva seu filho para passear na cadeira de rodas e o atira do alto de um morro; no segundo, Mestre Juca golpeia Sinhá com duas machadadas, num assassinato consentido que ela recebe como uma espécie de libertação.

Os eventos são apresentados fora de ordem cronológica, embaralhados por uma montagem mais preocupada em explorar a força poética das imagens do que em organizar narrativamente uma história. O efeito pode vir antes da causa, ou intercalar-se com ela. O relato é circular, e não linear como na maioria dos filmes. A narrativa forma uma espiral barroca através da imprevisível sucessão das cenas. Tal visualidade barroca é trabalhada não apenas nos vertiginosos efeitos plásticos da montagem, mas também internamente na construção do plano e do espaço, seja por longos e sinuosos movimentos de grua, seja pela expressiva iluminação dos interiores, carregada de dramaticidade. A cenografia ajuda a acentuar o "barroquismo decadentista" já presente no livro e deliberadamente sublinhado por Saraceni. Na casa de Don'Ana, por exemplo, destacam-se como objetos de cena as muitas cortinas e espelhos, traços emblemáticos de uma cenografia que ao mesmo tempo bloqueia e duplica a visão, ora escondendo alguma coisa, ora confundindo o olhar com um excesso de reflexos.

As duas cenas de assassinato são os momentos em que o filme atinge o ápice de sua riqueza formal. Na primeira delas, a montagem inverte a cronologia e antecipa os planos de Don'Ana em casa, arrependida do que fez, aos planos em que empurra o filho do alto do morro. A duração da cena é dilatada - e sua morbidez, duplicada - por conta da opção pela câmera lenta e por imagens que sugerem a violência da queda sem mostrá-la explicitamente: o que se vê não é o corpo do rapaz se chocando contra o solo, mas antes o voo atiçado de alguns urubus e o trajeto errante do chapéu de Zeca caindo pelos ares, em planos entrecortados pela reação hiperdramatizada de Don'Ana. Na morte de Sinhá, já na segunda metade do filme, a montagem e a mise en scène também contribuem para que a cena sobressaia devido à expressão visual e à intensidade dramática. Mestre Juca encontra Sinhá na ponte, sentada à beira da linha do trem; ela diz que está "pronta" e ele a golpeia duas vezes com o machado. A violência, agora, é frontal e direta: a câmera enquadra o machado acertando o pescoço de Sinhá, e a montagem amplifica o golpe por meio do corte e da variação brusca de escala e angulação. Já às lágrimas, Sinhá se levanta para receber novo golpe. Em seguida, deita-se sobre o trilho do trem e aguarda pela morte. O choro se mistura ao riso, e o rosto de Sinhá se funde à imagem do pássaro tiê-sangue, numa sobreimpressão que aproxima poeticamente ideias antinômicas, como amor e morte, liberdade e sacrifício, inocência e culpa. A identificação de Sinhá com o pássaro, já sugerida em outros momentos do filme, é revalorizada pela potência lírica da sobreimpressão. A cor de seu vestido muda de branco para vermelho e, quando suas forças parecem ter-lhe abandonado o corpo, a cena salta de um plano médio da atriz para um grande plano geral da ponte, com dezenas de balões vermelhos subindo ao céu como se fossem as gotas de sangue se espalhando e se dissolvendo no espaço.

Um dos grandes destaques é a música inédita de Tom Jobim: Tiê-Sangue, composta no começo dos anos 1970 para o filme e esquecida por mais de duas décadas, até ser redescoberta por Paulo Jobim, filho de Tom. O maestro Túlio Mourão, que assina a trilha de O Viajante, pede a Chico Buarque que escreva a letra da música, que teve ainda arranjos de Paulo Jobim e Sérgio Saraceni (sobrinho do diretor). Milton Nascimento, que faz parte do elenco (o cantor regional que aparece acompanhado de seu realejo), tem quatro músicas incluídas na trilha; dentre elas, dois temas religiosos (Pange Lingua e Tantum Ergo Sacramentum) que Mourão recolheu em pesquisas de pré-produção. Milton canta ainda a regravação de Derradeira Primavera, tema de Porto das Caixas, com letra de Vinicius de Moraes. Completam a trilha canções de Cartola e de Ari Barroso.

Assim como Humberto Mauro (1897-1983), um dos pioneiros do cinema brasileiro, Saraceni aborda os signos de ruralidade e religiosidade que constituem uma espécie de "Brasil profundo", um Brasil arcaico e provinciano em processo de decadência, perdido entre as tradições religiosas e a modernização das relações sociais. "O cinema é cachoeira", dizia Humberto Mauro, e lá está a cachoeira na cena em que Sinhá e Rafael se beijam: a força das águas simboliza o transbordamento das energias libidinais reprimidas, a violência provocada pela tensão entre sexualidade e puritanismo. A natureza, como em Mauro, é abertamente erotizada por Saraceni. O principal fator que aproxima os dois cineastas é a prospecção das capacidades poéticas  e expressivas do cinema: se Mauro o faz com a inocência dos pioneiros, Saraceni o faz com a consciência dos modernos.

Parentescos cinematográficos de O Viajante podem ser encontrados no começo dos anos 1980, em filmes como Inocência (1983), de Walter Lima Jr., e Noites do Sertão (1984), de Carlos Alberto Prates Correa, que também procuram mostrar, em histórias ambientadas no interior do Brasil, a ligação telúrica das personagens (sobretudo femininas) com a natureza, num clima que combina mistério e sensualidade.

Em texto para a Folha de S.Paulo, Inácio Araújo afirma que O Viajante transporta o espectador para um "mundo fantástico, em que se acotovelam a espiritualidade e a carne, no qual os demônios fustigam a santidade"1. Ele qualifica o filme como "fora de moda" e "anacrônico", o que, no contexto de insatisfação do crítico com os filmes da "retomada", significa o maior dos elogio, pois "trata-se de um magnífico anacronismo, que se mostrará generosamente a quem se disponha a abrir os olhos e contemplá-lo"2.

Na revista Cinemais, João Carlos Rodrigues chama a atenção para o emprego da simbologia cristã por parte de Saraceni, uma vez que O Viajante está perpassado de temas bíblicos, como o sacrifício, a profanação, a chegada do Messias, a ressurreição, o milagre etc. O filme traz também, segundo o crítico, ressonâncias da tragédia grega.

 

Fontes de pesquisa 3

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  • AZEREDO, ELY. Olhar Crítico: 50 anos de cinema brasileiro. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2009.
  • MIRANDA, Ricardo. A etnografia da amizade. In: Contracampo, n. 50, maio de 2003. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/50/saraceni.htm. Acesso em: abril de 2013.
  • SARACENI, Paulo César, CARNEIRO, Mário. Eu só filmo quando baixa o santo. In: Cinemais, n. 15, jan.-fev. 1999, p. 7-24.

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