Sem Essa, Aranha
Texto
Sem essa, Aranha (1970) é um dos três filmes dirigidos por Rogerio Sganzerla (1946-2004) em 1970 na Belair, produtora carioca fundada pelo diretor em associação com Júlio Bressane. É realizado de forma ágil e barata, contando com o mesmo grupo de artistas e técnicos de Copacabana Mon Amour (1970) e Carnaval na lama (1970), ambos dirigidos por Sganzerla. A idéia de uma produção cinematográfica entre amigos, feita coletivamente, propicia uma liberdade de criação extrema. Em um período de forte repressão militar e censura, os donos da Belair deixam o país, e o filme é finalizado na Europa. É o desdobramento de um projeto anterior de Sganzerla, um ensaio experimental denominado O Picareta, que seria filmado em nove tomadas de dez minutos de duração cada1.
Trata-se de um filme sem roteiro prévio, realizado com orçamento bastante limitado e sem preocupações com a censura. É de grande importância a colaboração criativa por parte dos atores, num processo aberto ao improviso. A narrativa dispersa, criada na filmagem, Sem essa, Aranha apresenta a história de Aranha, uma espécie de gangster, "o último capitalista do Brasil" que, aos poucos, se destrói. Interpretado por Jorge Loredo, o protagonista é uma adaptação de Zé Bonitinho, conhecido personagem de programas de TV2. Na tentativa de acabar com o câncer, a fome, a febre e o frio que dominam o Brasil, Aranha chega a vender a alma ao Diabo. Ao lado de duas mulheres malucas (Helena Ignez e Maria Gladys) o magnata circula entre a sua mansão, situada em uma favela carioca, e lojas de automóveis, boates, cabarés de Copacabana, supostos teatros de revista em Assunção, espaços abandonados e praias dos Estados Unidos. Envolve-se com o trafico de mulheres para o Paraguai, a compra da Amazônia pela burguesia internacional, prostitutas, jogo do bicho, poderes ocultos, candomblé, quimbanda, atividades circenses e, no final do filme, é morto pela própria mulher. Sem essa, Aranha é uma reflexão sobre o país daquele momento e sobre o papel do cinema. O próprio Aranha não é um mero personagem, mas uma alegoria, um conjunto de ações absurdas que representam o Brasil. O Rio de Janeiro, suas favelas e a praia de Copacabana, são apresentados de forma fragmentada, evocando um país em crise de identidade. O ambiente é violento, dominado por berros, gestos agressivos, convulsões e vômitos.
Como os outros filmes produzidos pela Belair, Sem Essa Aranha representa uma radicalização do Cinema Marginal, principalmente no que se refere ao questionamento da narrativa cinematográfica. As ações e espaços se repetem, sem levar a desdobramentos. O da transgressão e a violência se manifestam na performance dos atores, em seus gestos e ações. Há ainda uma forte ironia, baseada no tom cafona de alguns personagens, bem como na encenação tosca e improvisada.
A liberdade de criação e experimentação é um dos traços marcantes do filme. Ela está presente nos movimentos de câmera e nas técnicas de interpretação dos atores. Ismail Xavier³ comenta que Sem Essa Aranha assemelha-se a um diário de bordo, aproximando as fronteiras entre o fluxo da experiência e o exercício cinematográfico.
A história de Aranha é apresentada aos espectadores por meio de longos planos-seqüência do filme, que chegam a onze minutos de duração. A unidade temporal não se traduz em continuidade de ações: há rupturas nos deslocamentos feitos pela câmera, com ambientações diferenciadas e acúmulo de informações. A interação entre personagens e câmera é improvisada. A interação entre personagens e câmera, marcada pelo improviso, contribui para acentuar essa ruptura.
Em um plano-sequência na segunda metade do filme, o interesse de Aranha em dominar o país é apresentado com maiores detalhes. Ainda está em pauta a definição de um Brasil atrelado a um sistema neocolonial. Durante os oito minutos do plano, a câmera interage com vários personagens, detendo-se em cada um deles a fim de que se expressem. Este 'isolamento' permite que nossa atenção seja dirigida às 'ações' de cada um. A ação acontece em uma cobertura com piscina e vista panorâmica para o mar. Vemos a personagem interpretada por Maria Gladys berrando diante da câmera. Questionada a respeito do Brasil, responde mergulhando na piscina. Aranha, com uma entonação de voz galanteadora e camisa estampada, come uma figura que lembra o universo da TV e o teatro de revista. Esse personagem, o Zé Bonitinho, de 1965. Seu figurino é cafona, com cores e adornos exagerados, e suas falas são repletas de chavões e piadas de programa de auditório. É um personagem de mau gosto, que reúne referências do rock americano, da malandragem carioca e do apresentador de programas televisivos José Abelardo Barbosa de Medeiros (o Chacrinha). Em alguns momentos, a aparição de uma aranha de plástico sugere a releitura do filme de horror, baseada na ironia e na escassez de recursos. O plano inclui um número musical de Moreira da Silva que, interpretando Kid Morengueira, canta o samba de breque "Filmando na América". De óculos escuros e chapéu, seus gestos remetem ao universo do samba e ao tipo do malandro carioca. A personagem sedutora interpretada por Helena Ignez oscila entre a loucura e o relaxamento, mandando beijos para a câmera e, de forma sensual, chupando as patas da aranha de plástico. A câmera caminha entre essas figuras, compartilhando sua vivência do momento. Os ângulos, os movimentos, os diálogos, bem como as entradas e saídas dos personagens em relação ao campo de visão, tudo passa a ser improvisado.
Há uma sensação de desconforto, baseada no acúmulo de referências e de formas de atuação; a câmera lida com a aglomeração dos personagens e a eles se mistura, numa espécie de convulsão coletiva. Assim é construído um universo desorientado, proposto como a metáfora de um Brasil em crise. Sem Essa Aranha é uma colcha de retalhos. Em diálogo com a antropofagia dos modernistas brasileiros, o filme aproxima traços culturais nacionais e estrangeiros, com o objetivo de transformá-los em algo novo. Lado a lado, encontramos a malandragem, o samba, as religiões afro-brasileiras, a chanchada, o teatro de revista, bem como as referências à TV, ao rock americano e aos filmes B hollywoodianos. Neste processo de incorporação de referências externas, embora dominado pelo desespero, Sem Essa Aranha dialoga também com o Tropicalismo.
Em contraposição ao sucesso comercial de filmes anteriores do diretor - O Bandido da Luz Vermelha (1968) e A mulher de Todos (1969) -, Sem Essa, Aranha rompe com o mercado exibidor. O filme de Sganzerla é retido pela censura e não obtém o selo de qualidade emitido pelo Instituto Nacional de Cinema (INC)4, documento este necessário para o lançamento no circuito comercial. Limitado a exibições internacionais e a sessões especiais, torna-se uma obra desconhecida pelo grande público. Em julho de 1978, é exibido na Mostra do Horror Nacional, evento associado ao 11ºFestival de Cinema Brasília.
Sem Essa, Aranha normalmente é abordado pela crítica junto com outros filmes da Belair. Jairo Ferreira, por exemplo, destaca a transgressão representada por Sem Essa Aranha (1970), de Sganzerla, e Cuidado Madame (1970), de Bressane: "são o experimental por excelência no cinema [...] um terremoto clandestino que sismógrafo algum registrou"5. João Carlos Rodrigues, por sua vez, denomina o filme de "uma chanchada apocalíptica" e chama atenção ao seu teor de improviso"6.
Notas
1. SGANZERLA, Rogério. "Glauber Rocha - udigrudi: uma velha novidade" Arte em Revista, vol.3, no.5, p.80-82. maio 1981.
2. O personagem Zé Bonitinho, tem origem no programa humorístico Noites Cariocas, produzido pela TV Rio canal 13, entre 1958 e 1965. 3. XAVIER, Ismail. O Cinema Brasileiro Moderno. Paz e Terra: São Paulo, 2001. p. 80.
4. SGANZERLA, Rogério. "Luto para lançar meu cinema." Diário Popular, São Paulo, 4 dez. 1980; GUIMARÃES, Márcia. "Nós acusamos - o grito dos cineastas dos filmes desbotados." Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 maio 1981.
5. FERREIRA, Jairo. "Julio Bressane, rebelde da América." Folha de S. Paulo, 30 mar. 1979.
6. RODRIGUES, João Carlos. "Sem essa aranha de Rogério Sganzerla." Contracampo - revista de cinema, vol.58 . Acesso em: 20 de julho de 2010.
Fontes de pesquisa 13
- "Em Brasília, todo o horror nacional." Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 jul. 1978. p. 41.
- BERNARDET, Jean-Claude. O ôo dos anjos: Bressane, Sganzerla. São Paulo : Brasiliense, 1991.
- Cinema marginal: depoimentos e/ou escritos de/sobre Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Arthur Omar, Neville de Almeida, Ozualdo Candeias. São Paulo, 197-. [Pasta D57, da Biblioteca Paulo Emilio Salles Gomes - Cinemateca Brasileira].
- FERREIRA, Jairo. Julio Bressane, rebelde da América. Folha de S.Paulo, São Paulo, Folha Ilustrada, 30 mar. 1979. p.1.
- FERREIRA, Jairo. Um feitiço decente no ciclo de Sganzerla. Folha de S.Paulo, 12 jun. 1970.
- GARDNIER, Ruy. As Mil máscaras de dr. Rogério Sganzerla, cineasta. ITAÚ CULTURAL: Ocupação Rogério Sganzerla. Textos Joel Pizzini et al. São Paulo, 2010. p. 17-21.
- GUIMARÃES, Márcia. Nós acusamos - o grito dos cineastas dos filmes desbotados. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 maio 1981. Caderno B, p.1.
- RAMOS, Fernão. Cinema Marginal (1968/1973). São Paulo: Brasiliense, 1987.
- RODRIGUES, João Carlos. Sem essa aranha de Rogério Sganzerla. Contracampo - Revista de cinema, vol.58. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/58/art_dossiebelair.htm. Acessado em: 20 jul. 2010.
- SGANZERLA, Rogério. Belair, 20 anos depois. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17 set. 1990. Entrevista concedida a Suzana Schild.
- SGANZERLA, Rogério. Glauber Rocha - udigrudi: uma velha novidade. Arte em Revista, vol.3, no.5, p.80-82. mai. 1981.
- SGANZERLA, Rogério. Luto para lançar meu cinema. Diário Popular, São Paulo, 4 dez. 1980.
- XAVIER, Ismail. O Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001.
Como citar
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SEM Essa, Aranha.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67256/sem-essa-aranha. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7