Ressurreição
Texto
Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis (1839-1908). Nesta obra de formação, o autor introduz as ferramentas literárias notáveis de seus romances posteriores, como a ironia narrativa e a complexidade psicológica dos protagonistas. Marcado pela confluência de elementos do romantismo e do realismo, o livro se torna ponto de inflexão no repertório literário nacional.
A trama aborda o relacionamento entre Félix e Lívia. Completam a narrativa os personagens secundários: Viana, irmão de Lívia; Menezes, amigo de Félix; Raquel, filha do coronel Morais; e Batista, amigo do coronel. Félix é cético em relação ao amor e se engaja somente em relacionamentos curtos. No entanto, apaixona-se por Lívia durante sarau na casa do coronel Morais. Após o cortejo preliminar, ambos iniciam uma relação discreta, afastados dos comentários da corte. O choque entre personalidades distintas é a marca central do livro: Lívia é alegre, amorosa e receptiva, enquanto Félix é amargo e consumido pelo ciúmes. Sem razão aparente, ele desconfia da namorada. A situação se torna mais conflituosa quando Raquel apaixona-se por Félix, e Menezes confessa seu amor por Lívia. Tais situações são contornadas por Lívia, que consegue fazer com que Félix não descubra as intenções dos amigos.
Durante uma interpelação, Félix confessa que é amargurado por natureza e que depende do amor de Lívia para sobreviver. Com essas palavras, Lívia simboliza a ressurreição de Félix, pois o resgata da tristeza e da miséria. Dessa passagem advém o título do romance. Ambos decidem se casar em segredo. No dia anterior à cerimônia, Batista visita Félix para lhe perguntar sobre uma obra de arte. Em seguida, o noivo recebe um bilhete anônimo, é tomado pelo desespero e foge de casa. Ele envia uma carta a Lívia e cancela o casamento. A noiva adoece ao ouvir a notícia. Menezes descobre o paradeiro de Félix e parte em busca do amigo, que revela o conteúdo do bilhete: o relato de uma possível traição de Lívia. Ambos concluem que Batista é autor da nota. Félix pede perdão a Lívia, mas ela decide não se casar com ele. No desfecho, Menezes se casa com Raquel, Lívia, com um enfermeiro, e Félix continua a desconfiar de Lívia, já que não pode atestar a veracidade da mensagem de Batista.
Ao longo do romance, Machado de Assis utiliza modelos ficcionais típicos do período da publicação: um casal em conflito, os triângulos amorosos, a interferência de um vilão, a mediação das controvérsias e a reconciliação final. A ambientação do romance representa hábitos sociais de época, como as festas e os encontros privados em gabinetes. Outras marcas literárias datadas do período são o sentimentalismo exacerbado e a ausência de crítica social. Contudo, Ressurreição inova em dois fatores: a voz narrativa e a construção psicológica dos personagens.
O narrador dialoga com o leitor, em tom irônico e indagativo, de forma a fazê-lo questionar suas expectativas em relação à história. Com a quebra da neutralidade narrativa, levantam-se suspeitas sobre a conduta dos personagens. Fica a cargo do leitor a faculdade de decidir a coerência do que lhe é narrado. Assim, Machado de Assis sugere uma nova perspectiva de leitura. A profundidade psicológica dos protagonistas conclui essa tarefa. Os obstáculos ao amor de Félix e Lívia partem de conflitos inerentes às personalidades deles. Ambos sabotam a trama em decorrência de suposições que se agudizam em dilemas existenciais. Essa desconstrução do amor romântico representa o afastamento de Machado de Assis do padrão literário corrente à época da publicação.
Em vista dessas inovações, Ressurreição é recebido com ressalvas pelos contemporâneos. Segundo o professor Antonio Candido (1918 -2017), a construção da identidade nacional é um dos paradigmas da literatura brasileira no século XIX. Os escritores românticos à época de Machado se mobilizam pela educação moral e cívica. A preocupação dos autores com a recepção de suas obras é crucial nesse contexto. A fim de antecipar possíveis abordagens negativas, Machado de Assis insere uma nota de advertência como prólogo de Ressurreição, na qual informa que o livro não atende às expectativas dos críticos. Contudo, a advertência não impede a desaprovação do romance num primeiro momento.
A fortuna crítica do século XX aprofunda a análise de Ressurreição dentro do confronto entre as correntes do romantismo e do realismo. A partir da obra História da literatura brasileira (1916), do literato paraense José Veríssimo (1857-1916), convenciona-se que os quatro primeiros romances de Machado de Assis, incluindo Ressurreição, fazem parte das obras de primeira fase, na qual convergem elementos do romantismo. As obras posteriores à publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) são classificadas como obras da segunda fase, momento em que o autor se debruça sobre temas e artifícios do realismo. Parte da historiografia da obra machadiana, no entanto, contesta essa divisão em fases, ao argumentar que o corpo romanesco do autor não pode ser compartimentado. Tal vertente enfatiza conceitos que perpassam todos os romances do escritor: ciúme, pessimismo, individualismo, envelhecimento, questões financeiras e morte. Assim, Ressurreição é visto como o romance de formação e contém componentes literários que Machado de Assis aperfeiçoa com o tempo.
Em conformidade com a tradição literária do romantismo, Ressurreição inova ao introduzir elementos narrativos pouco usuais para sua época. Por meio da trama aparentemente tradicional, Machado de Assis apresenta suas principais marcas literárias e renova o gênero do romance no Brasil.
Fontes de pesquisa 10
- ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1994.
- ASSIS, Machado de. Resurreição [sic]: romance. Rio de Janeiro: B.L. Garnier, 1872. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5296. Acesso em: 16 mar. 2022.
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- HILÁRIO, Márcio Vinícius do Rosário. A desconstrução do romanesco nos primeiros romances de Machado de Assis. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2012. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
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- SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2000.
- VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908). São Paulo: Letras & Letras, 1998.
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RESSURREIÇÃO.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra64910/ressurreicao. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7