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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

A Educação pela Pedra

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 12.08.2015
1966
Resultado de uma poética que, empenhada na busca pela racionalidade, reduziu-se ao essencial, A Educação pela Pedra (1966) é considerado o ponto mais alto da obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Os poemas retomam os temas de predileção do autor - em torno da privação, do Nordeste brasileiro e da cidade espanhola Sevilha - e constroem-se...

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Resultado de uma poética que, empenhada na busca pela racionalidade, reduziu-se ao essencial, A Educação pela Pedra (1966) é considerado o ponto mais alto da obra de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Os poemas retomam os temas de predileção do autor - em torno da privação, do Nordeste brasileiro e da cidade espanhola Sevilha - e constroem-se com rigor técnico evidente desde a organização do livro até a composição dos versos.

O título define-se, na dedicatória a Manuel Bandeira (1886-1968), como "antilira", na sequência de um projeto literário que procura evitar o puro lirismo. O apagamento de marcas pessoais e a consequente impressão de ausência do sujeito lírico, o olhar concentrado em objetos concretos e o emprego de recursos literários para valorizar a materialidade do mundo visível sustentam uma poética que se quer objetiva.

Se a negação do lirismo se fazia notar na obra de João Cabral desde 1947, com A Psicologia da Composição, a publicação de Quaderna, em 1960, inaugura o que o próprio autor define como "interesse sempre crescente pela máquina do poema". Trata-se de tornar patente o trabalho de construção poética, de modo que a estrutura dos poemas imponha-se como dado evidente à leitura, com vistas, também, a reflexões metalinguísticas.

São quatro as partes que compõem A Educação pela Pedra, nomeadas a, b, A e B - cada uma delas com 12 poemas, invariavelmente. As letras minúsculas indicam seções em que os poemas têm 16 versos; nas outras, têm 24. O universo de a e A é nordestino; em b e B há temas variados. A organização dos poemas dentro de cada grupo é simétrica: as três primeiras composições têm estrofes iguais; nas três seguintes, a primeira estrofe é menor do que a segunda; nas outras três, a primeira é maior do que a segunda; nos três poemas finais da seção, primeira e segunda estância têm novamente a mesma quantidade de versos.

Na primeira edição do livro, as duas estrofes que formam cada um dos poemas são dispostas em páginas distintas (cada par de páginas é dedicado a uma única composição). Em cada seção, há seis poemas divididos por asteriscos e seis por números: nesse caso, as estâncias são complementares; já o sinal * indica oposição no interior do próprio poema. A arquitetura, que se faz sentir em todos os níveis do livro, tem ainda outra manifestação mais evidente: o intercâmbio de versos entre poemas diferentes, cujo ponto máximo está entre Nas Covas de Baza e Nas Covas de Guadix, compostos dos mesmos versos, mas reordenados.

Também O Mar e o Canavial e O Canavial e o Mar partilham os mesmos versos, embora não integralmente, mas com leves alterações. Nos dois casos, trata-se de aproximar a horizontalidade do canavial e o lento e progressivo avanço das águas do mar, extraindo-se daí uma lição poética. Um verso presente em ambas as composições apresenta ainda uma noção cara a todo o livro, "o comedimento do latifúndio do mar", numa referência ao trabalho de contenção desempenhado pelo artista. A necessidade de contenção seria o ensinamento a extrair dessa paisagem.

Segundo João Alexandre Barbosa (1937-2006), um dos principais intérpretes de João Cabral, A Educação pela Pedra é exemplar na forma como o autor enfrenta o problema da relação entre poesia e realidade. A palavra é sempre considerada sob dois pontos de vista não excludentes: como termo que denota algo no mundo e como elemento de uma expressão que sempre questiona seus próprios limites. Segundo o crítico, os poemas objetivam não a representação, mas a "presentificação da experiência através da palavra".

Um exemplo notório do que identifica Barbosa é o conhecido poema Tecendo a Manhã: "Um galo sozinho não tece a manhã:/ ele precisará sempre de outros galos". São variados os recursos empregados com o objetivo de mimetizar os movimentos próprios à tecelagem: o constante retorno do termo "galos", a insistência em sons como g, gr e t e as elipses sintáticas impõem aos versos o ritmo e o aspecto de uma tessitura; à medida que os galos compõem a manhã, os versos tecem o poema.

Os sentidos da composição não se esgotam, porém, na dimensão artesanal. Entre os galos e a fabricação da manhã ergue-se um sutil teor social, que não se quer vulgarmente engajado, mas propõe que uma nova realidade social possa se criar a partir do trabalho solidário e coletivo entre os homens. Assim, a descrição de algo verificado na realidade - o nascer do dia - é feita com grande consciência dos recursos linguísticos, de modo que a composição extraia ao mesmo tempo uma lição ética do fenômeno observado - o nascer de uma nova realidade - e um modo único de expressão - o fazer-se do poema como a tecelagem dos galos. Conforme resume Marta Peixoto, "o poema não só propõe mas faz o que propõe.1

Caso semelhante é o de Rios sem Discurso, que associa o curso do rio ao discurso do poeta e ambos à solidariedade entre os homens. O poema evolui segundo a lição do "espraiar-se minucioso" aprendida com o mar do poema antes referido, num encadeamento lógico, baseado em conjunções e advérbios, que lhe confere teor argumentativo: "um rio precisa de muita água em fios/ para que todos os poços se enfrasem:/ se reatando, de um para outro poço,/ em frases curtas, então frase e frase,/ até a sentença-rio do discurso único/ em que se tem voz a seca ele combate".

A tendência argumentativa constitui, na opinião de Benedito Nunes (1929-2011), uma forma de se realizar a educação proposta no título do volume. O poeta está empenhado em assegurar a capacidade de comunicação da poesia, buscando nos modos de ser dos objetos e paisagens retratados formas de dar a ver como "o mundo e o homem, a sociedade e o indivíduo, em posição de partes adversas, confrontam-se hostilmente e tratam-se com dureza.2

A pedra seria, assim, um "ideal ético de resistência fria", um modelo de enfrentamento à realidade - cujas forças são sintetizadas por João Cabral na realidade nordestina. Pelo retrato localizado de valores universais entende-se por que o autor pôde por vezes ser considerado regionalista. Já pela dimensão construtiva de sua obra, exemplarmente realizada em A Educação pela Pedra, compreende-se por que, desde 1956, o poeta foi nomeado um precursor da poesia concreta, já que a linguagem direta e a economia e arquitetura funcional do verso, traços apreciados por essa vanguarda, justamente definem a obra de Cabral.

Notas
1 PEIXOTO, Marta. Poesia com coisas: uma leitura de João Cabral de Melo Neto. São Paulo: Perspectiva, 1983.
2 NUNES, Benedito. João Cabral de Melo Neto. Petrópolis: Vozes, 1971.

Fontes de pesquisa 23

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  • LIMA, Luiz Costa. Lira e antilira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986.
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  • MARTELO, Rosa Maria. Estrutura e transposição: invenção poética e reflexão metapoética na obra de João Cabral de Melo Neto. Porto: Fundação Engenheiro Antonio de Almeida, 1990.
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