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Enciclopédia Itaú Cultural
Literatura

Memorial de Ayres

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 06.03.2024
1908
Reprodução Fotográfica Horst Merkel

Memorial de Ayres, 1908
Machado de Assis
Brasiliana Itaú/Acervo Banco Itaú

Último romance publicado em vida por Machado de Assis (1839-1908), Memorial de Aires (1908) é um relato autobiográfico ficcional em prosa, pertencente à tradição literária do Realismo. O romance possui linguagem concisa e objetiva, narrado em primeira pessoa pelo conselheiro Aires. A estrutura da narrativa é organizada em entradas do diário pess...

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Último romance publicado em vida por Machado de Assis (1839-1908), Memorial de Aires (1908) é um relato autobiográfico ficcional em prosa, pertencente à tradição literária do Realismo. O romance possui linguagem concisa e objetiva, narrado em primeira pessoa pelo conselheiro Aires. A estrutura da narrativa é organizada em entradas do diário pessoal de Aires, nomeadas por datas. O enredo é simples, embora leituras atentas ressaltem a crítica social sugerida nas lacunas da narrativa, cujo tempo histórico compreende o declínio do Império e a abolição da escravatura no Brasil.

O narrador do romance é o mesmo da obra anterior do escritor, Esaú e Jacó (1904), apontando para a intertextualidade entre os dois romances. Em Memorial de Aires, o tempo da narrativa compreende os anos de 1888 e 1889, quando Aires, agora aposentado, está de volta ao Rio de Janeiro, depois de 30 anos de atuação como diplomata no exterior. A narrativa apresenta progressão linear de datas, mas repleta de digressões e hiatos, e conta fatos corriqueiros da elite carioca.

Aires apresenta suas reflexões aparentemente sem preocupação com possíveis julgamentos, uma vez que não escreve para um público ou um interlocutor. Escreve apenas para si e para sua irmã Rita, que pode ler o diário depois de sua morte. Uma das principais linhas da narrativa se desenvolve em torno da jovem viúva Fidélia Noronha.

Em uma das primeiras entradas do romance, Aires aposta com Rita que a viúva se casaria novamente, enquanto a irmã afirma que Fidélia permaneceria viúva. Sem muita ênfase, Aires cultiva a fantasia de ser ele a se casar com a viúva. As relações de Aires se restringem sobretudo a Rita e ao casal formado por Dona Carmo e Aguiar, cuja maior tristeza é não ter gerado filhos biológicos. O casal compensa o infortúnio com a adoção de "filhos postiços", como Fidélia, órfã de mãe e cujo pai a renegou por causa do casamento com um inimigo da família. Outro "filho postiço" é o afilhado Tristão, que passa uma infância muito próxima ao casal Aguiar, mas pate para morar em Lisboa com os pais, deixando saudades e passando anos sem dar notícias.

O pai de Fidélia é o Barão de Santa-Pia, escravista e dono de fazenda de café, que visita o Rio de Janeiro por causa da notícia da iminente proclamação da Lei Áurea. Quando o fim da escravatura é oficializado, a notícia é eclipsada por outra novidade: Tristão retorna ao Brasil para visitar os padrinhos. O casal Aguiar fica exultante com o retorno do afilhado, e a abolição passa para o segundo plano.

A causas e também os efeitos da abolição formal da escravidão são ofuscados por intrigas domésticas. A narrativa transcorre entre encontros privados, salas de chá e recitais ao piano. Predominam eventos corriqueiros, sem grandes conflitos. As características comedidas da carreira diplomática de Aires contaminam a linguagem, que foge de superlativos, conflitos e juízos de valor.

Inicialmente, a crítica especializada ressalta as características autobiográficas do romance e toma o narrador como uma espécie de alterego do autor, ambos viúvos e sexagenários. A partir da década de 1970, entretanto, são apresentadas leituras mais críticas do romance, que levantam dúvidas sobre a imparcialidade do narrador. Segundo essa nova leitura, a narrativa de Aires deve ser interpretada com desconfiança, por representar o ponto de vista de um membro da elite, interessado e contaminado por preconceitos de classe.

O ensaio "Memorial de Aires", de John Gledson (1945), apresenta um marco na fortuna crítica da obra. A narrativa do diplomata aposentado deixa de ser interpretada como um relato desinteressado e imparcial. Nessa perspectiva, quando o barão de Santa-Pia morre e deixa para a viúva Fidélia uma rica herança, a ausência de reflexões sobre a escravidão e seus efeitos se torna um modo de explicitar os mecanismos de opressão social daquela época. Desconfiar do narrador se torna uma chave importante para a leitura da obra, atribuindo sentido crítico ao que foi omitido do texto.

Na narrativa não há mudança perceptível na vida dos escravizados depois da abolição. Nenhum deles é referido pelo nome próprio, nem participa da narrativa como personagem. Com o fim da escravidão, existe apenas uma mudança de nomenclatura: os "escravos" passam a ser denominados "libertos", sem nenhuma outra transformação de função ou status. Os libertos seguem trabalhando na fazenda Santa-Pia, mesmo após a morte do barão.

Ainda no Brasil, Tristão recebe a notícia de que foi eleito deputado em Portugal. Tristão e Fidélia se casam e se mudam para Lisboa, para tristeza do casal Aguiar e disfarçada desilusão de Aires. Antes de partir e por influência de Tristão, que aparentemente desejava evitar a fama de interesseiro, Fidélia doa a decadente e exaurida fazenda Santa-Pia aos libertos. Na interpretação de Gledson, essa doação é uma metáfora do descaso das elites com o destino do Brasil pós-escravidão.

Aires é, portanto, um narrador pouco confiável, porque representa valores e preconceitos de uma classe social com interesses específicos, incrustados em sua visão de mundo e consequentemente na sua narrativa dos fatos observados. A neutralidade ou indiferença de Aires diante de uma situação social de violência extrema aponta para a posição do narrador, comprometido com os valores da elite. A linguagem objetiva e a banalidade do enredo contrastam com o anonimato da multidão de homens e mulheres até então escravizados, agora libertos com um destino incerto.

Importante contribuição de Machado para o movimento realista da literatura brasileira, Memorial de Aires discute as heranças da escravidão na sociedade brasileira e visão de mundo das elites sobre este novo cenário social.

Fontes de pesquisa 6

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  • ASSIS, Machado de. Memorial de Ayres. Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1908. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4707. Acesso em: 16 mar. 2022.
  • BETELLA, Gabriela Kvacek. Narradores de Machado de Assis: a seriedade enganosa dos cadernos do Conselheiro (Esaú e Jacó e Memorial de Aires) e a simulada displicência da crônicas (Bons Dias! e A Semana). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/Nankin, 2007.
  • CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
  • FILHO, Wolmyr Aimberê Alcantara. História e política no Memorial de Aires, de Machado de Assis. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2009.
  • GLEDSON, John. Machado de Assis: ficção e história. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003.
  • SCHWARZ, Roberto. Machado de Assis: um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.

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