Memorias posthumas de Braz Cubas
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Memorias posthumas de Braz Cubas, 1881
Machado de Assis
Brasiliana Itaú/Acervo Banco Itaú
Texto
Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), romance do escritor Machado de Assis (1839-1908), representa o marco inaugural do realismo na literatura brasileira1. No livro, são frequentes as digressões metalinguísticas e as reflexões filosóficas sobre a natureza humana, em que o narrador apresenta suas motivações, hesitações e justificativas, dirigidas muitas vezes ao leitor.
O romance é uma autobiografia ficcional do narrador-personagem Brás Cubas, que escreve suas memórias do além-túmulo. A obra é composta por 160 capítulos curtos, organizados de forma não linear e inicialmente publicados de forma seriada na Revista Brasileira, entre março e dezembro de 1880. Os capítulos são reunidos em formato de livro no ano seguinte2.
O romance se passa no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX e é narrado do ponto de vista de um falecido membro da elite aristocrática e escravocrata. Brás Cubas se apresenta como alguém liberto das vaidades humanas, uma vez que está morto. Isso lhe garante isenção ao reconhecer defeitos e fracassos que em vida não admite. Ainda assim, trata-se de um narrador interessado, com visão parcial dos acontecimentos, contaminada pela origem social e pelos valores que o narrador acumula em vida.
A ironia é figura de linguagem que perpassa todo o romance, desde a dedicatória, endereçada ao primeiro verme que roeu as carnes do narrador-protagonista. Numa das digressões metalinguísticas, Brás Cubas compara a organização dos capítulos ao andar de um bêbado cambaleante, que avança e recua, vacila de um lado a outro, depois cai. As hesitações da narrativa enfatizam características da personalidade do protagonista, que leva a vida guiado por ambições difusas, sem convicção nem método. O enredo é simples, há poucos acontecimentos e poucos personagens. A vida de Brás Cubas transcorre sem grandes tragédias, nem grandes realizações; o personagem não vive amores capazes de romper conveniências ou ultrapassar aparências. Também não há um grande propósito ou um ideal norteador: a vaidade do protagonista salta de um objeto a outro, sem se fixar nem persistir. Mesmo o desejo de reconhecimento não é vigoroso o bastante para lhe romper a inércia.
Na infância, Brás Cubas aplica diversas agressões contra os escravos de sua casa, em especial contra Florêncio, em quem monta e chicoteia diariamente, como faz com cavalos. Cercado de privilégios, Brás Cubas cresce mimado e cruel, sem que ninguém lhe repreenda as perversidades. Pelo contrário, recebe carinhos e prêmios de seu pai, que deposita nele ambições de fama e glória. No início da adolescência, se enamora de Marcela, caracterizada por eufemismos e elipses como uma prostituta. O amor dela, segundo o narrador, durou "quinze meses e onze contos de réis"3. Para encerrar este caso, o pai envia Brás Cubas para a Europa. Apesar de medíocre nos estudos, obtém o título de bacharel na Universidade de Coimbra.
Essa formação escolar privilegiada transparece na rica intertextualidade do romance. Há referências a diversas obras literárias, personagens e eventos históricos. São abundantes as citações em latim, francês e inglês, além de referências a passagens bíblicas, à Divina comédia e aos filósofos gregos, ainda que muitas vezes de forma superficial.
De volta ao Rio de Janeiro, aceita duas propostas do pai: casar-se com Virgília, filha de um homem da elite, e tornar-se deputado. Virgília, entretanto, desiste do noivado e se casa com Lobo Neves. Em outro momento, os ex-noivos iniciam um caso extraconjugal. Brás cogita uma fuga para viver plenamente esse amor, o que não se realiza. Os amantes vivem de encontros fortuitos em uma casa na periferia carioca até serem descobertos e se separarem sem alarde. É o relacionamento mais importante de Brás, ainda que Virgília nunca abandone Lobo Neves.
Nessa época, Brás Cubas encontra um colega de escola, Quincas Borba, na rua a pedir esmolas. Depois de receber uma herança, o antigo amigo reencontra Brás Cubas para lhe apresentar o Humanitismo, sistema filosófico que pretende substituir todos os demais sistemas de pensamento e legitimar guerras e desigualdades como forças essenciais ao desenvolvimento da humanidade. O contraste entre a arrogância inicial do sistema e o fim de Quincas Borba, que morre louco e sem concluir seu trabalho, reforça a função do Humanitismo como sátira de teorias cientificistas adotadas pelas elites do período4.
O último capítulo faz uma espécie de balanço da vida de Brás Cubas, marcada por negativas, como não ter se casado nem alcançado a fama. No entanto, outras negativas lhe são favoráveis: não enlouquece como Quincas, não é obrigado a trabalhar para viver e não sofre durante a morte. Por fim, o saldo de sua existência também se dá por meio de uma negativa: não teve filhos e, por isso, não transmite o legado da miséria humana. Nesse momento, o humor ácido se torna mais agudo e revela a frustração e o pessimismo sobre a natureza humana do narrador-protagonista.
O romance antecipa recursos utilizados do século seguinte, como o elemento fantástico do foco narrativo de um "defunto autor". A mescla de gêneros (presença de versos e capítulos sem palavras, compostos apenas por sinais de pontuação) também antecipa a valorização de elementos não verbais característicos da poesia concreta. A estrutura fragmentária, o tempo não cronológico e as inovações gráficas exercem influência sobre os modernistas.
Essa inovação estrutural é alvo de polêmicas sobre a narrativa ser ou não ser considerada um romance pela crítica da época. Capistrano de Abreu (1853-1927), embora questione o gênero literário da obra5, considera que “romance aqui é simples acidente. O que é fundamental e orgânico é a descrição dos costumes, a filosofia que está implícita [...]. Tudo é bom; tudo é grande; tudo é santo. A humanidade reside no todo, mas reside igualmente no indivíduo. Como, por conseguinte, pode lesar-se a si própria”6.
Inspiração para os modernistas e obra estruturante da trajetória de Machado de Assis, MPBC é um marco da literatura brasileira por sua inovação técnica e temática, próprias do trabalho do escritor.
Notas
1. FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO Jr., José Hamilton. Língua portuguesa: linguagem e interação. 3.ed. São Paulo: Ática, 2016. p.165.
2. FISCHER, Luís Augusto. “Notas sobre a edição”. In: ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 2019. p.7.
3. ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 2019. p.89.
4. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1938. p.104.
5. O trecho se refere à análise de Capistrano de Abreu presente na seção “Livros & Letras” do jornal Gazeta de Notícias, de 30 de janeiro de 1881.
6. ABREU apud Cordeiro, p. 124
Fontes de pesquisa 8
- ASSIS, Machado de. Memorias posthumas de Braz Cubas. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1881. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo, [s.d.]. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/4826. Acesso em: 16 mar. 2022.
- BOSI, Alfredo. Moderno e modernista na literatura brasileira. In: BOSI, Alfredo. Céu, Inferno. São Paulo: Ática, 1988.
- CANDIDO, Antonio. “Esquema de Machado de Assis”. In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades. 1968. p. 15-32
- CORDEIRO, Verbena Maria Rocha. Memórias Póstumas de Brás Cubas: Trilhas de leitura. Signo. Santa Cruz do Sul, v.33 nº especial, p.121-127, jul., 2008. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/signo/article/view/614. Acesso em: 3 maio 2022.
- FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto de; MARUXO Jr., José Hamilton. Língua portuguesa : linguagem e interação. 3. ed. São Paulo: Ática, 2016.
- FISCHER, Luís Augusto. “Notas sobre a edição”, in ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas. Porto Alegre: L&PM, 2019.
- KOCH, Ana Maria. Intertextualidade em Memórias póstumas de Brás Cubas. 2004. 555 f. Tese (Doutorado em Letras).Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre 2004.
- SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades, 1938.
Como citar
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MEMORIAS posthumas de Braz Cubas.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra16186/memorias-posthumas-de-braz-cubas. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7