Liceu de Artes e Ofícios da Bahia
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Histórico
O Liceu de Artes e Ofícios da Bahia é criado em 20 de outubro de 1872, em Salvador, com o objetivo de qualificar operários e artífices para o mercado de trabalho. Trata-se de uma instituição que oferece gratuitamente aulas noturnas, abertas a todos, sem distinção de cor e classe social, solicitando apenas que os candidatos manifestem "condições morais" adequadas. Viabilizado por iniciativa do Estado e apoiado pelas agremiações profissionais da época - que mobilizam a sociedade para as doações, inclusive para a construção do edifício, o Liceu orienta sua estrutura educacional em função do ensino prático (aprendizado nas oficinas) e teórico (formação humanística). Seus modelos são as experiências anteriores do Rio de Janeiro e das escolas de artes e ofícios francesas, criadas nos séculos XVIII e XIX.
A idéia de fundar um Liceu de Artes e Ofícios na Bahia é inseparável de um contexto marcado pela progressiva substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, no qual os termos modernização e progresso passam a povoar o vocabulário das elites políticas. Enfatiza-se, aí, a criação de escolas com características profissionalizantes que ofereçam instrução adequada aos homens livres e libertos, capazes de se inserir nos diversos postos comerciais e industriais em expansão no período. Como sociedade civil, sem fins lucrativos, organizada em torno de interesses beneficentes e educacionais, o Liceu mantém um corpo de associados de diferentes camadas sociais: os sócios efetivos (maiores de 21 anos, artistas ou operários, homens de "bons costumes"), os correspondentes (domiciliados fora da capital), os honorários (figuras ilustres da sociedade) e os beneméritos (que contribuem com donativos). É somente a partir de 1917 que se observa a inclusão de novos segmentos sociais: os bacharéis, engenheiros, militares e negociantes.
Salvador, a capital da província, é cidade portuária e entreposto comercial com expressivo crescimento demográfico, desde fins do século XIX. O aumento da população se faz acompanhar pelo incremento da construção civil e pela intensificação de uma política urbanística, como indicam as reformas em curso, sobretudo na Cidade Baixa. A diferenciação do mercado de trabalho se revela, pelas diversas associações criadas, ligadas a diferentes ramos de atuação: tipógrafo, professor, caixeiro, chapeleiro, alfaiate, entre outros. Nesse quadro destacam-se as sociedades profissionais, fundadas nos anos 1870, como a Sociedade de Artes e Ofícios da Bahia, em 1872, a Sociedade Liga Operária Baiana, em 1876 e a Sociedade Democrática Classe Caixeiral, em 1877 - reveladoras do caminho percorrido pelas classes trabalhadoras na Bahia no período pré-abolição da escravatura, que visam garantir direitos e definir os contornos das profissões existentes. O Liceu de Artes e Ofícios é mais uma iniciativa visando à modernização da produção e das relações de trabalho. Trata-se de valorizar o trabalho manual - até então associado à mão-de-obra escrava - diante da expansão do trabalho livre em âmbito urbano e de proteger os trabalhadores livres, libertos ou escravos prestes a serem libertados, concedendo-lhes escola, profissão, ocupação e reconhecimento social.
A criação do Liceu baiano acompanha uma política mais ampla de incentivo ao ensino técnico e profissionalizante no Brasil, como atestam a fundação do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, em 1856, e o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, em 1873. Uma das especificidades do Liceu baiano, segundo os estudiosos, é o acentuado caráter beneficente, que se revela na preocupação em oferecer não apenas atendimento às necessidades profissionais, mas também em assegurar a sobrevivência de artistas e operários, com a promoção de garantias previdenciárias a sócios e familiares. A instituição atende assim, diz a historiadora Maria das Graças Leal, "aos reclamos constantes dos operários que vivenciavam uma situação de abandono social". A participação operária na fundação do Liceu pode ser percebida pela atuação das organizações paroquiais junto à escola e no próprio discurso do Estado que anuncia a criação de um liceu de artes e ofícios em Salvador, "com a participação direta de artistas e operários". João Francisco Romão, filho do pintor Francisco da Silva Romão, um dos principais entusiastas da iniciativa (depois vice-presidente da instituição), enfatiza ser a escola fruto direto das demandas e interesses das classes operárias. Não por acaso em seu primeiro ano de fundação, conta com 178 sócios: sendo 90% de artífices e operários e o restante distribuído entre médicos, professores e funcionários públicos.
Sem sede própria, as atividades do Liceu têm início na Sociedade Monte-Pio dos Artistas, passando em seguida para prédio na atual rua Chile. Em 1874, a escola adquire um edifício colonial, o Paço do Saldanha (solar construído entre fins do século XVII e princípios do XVIIII), por meio de doações e campanhas de arrecadação. As aulas dividem-se entre letras, desenho, gramática filosófica e francês - para uma formação geral - e o aprendizado nas oficinas. As primeiras a funcionar são as oficinas de encadernação e escultura; logo depois as de marcenaria e tipografia. Além dos espaços de aulas e ateliês, o Liceu conta com o salão principal para eventos e conferências, iniciadas em 1875, realiza certames musicais e se vale da Biblioteca Popular do Liceu, criada em 1878, para complementar a formação dos alunos. Outra atividade regular são as exposições de trabalhos dos alunos. A primeira é realizada em seguida à transferência da escola para o Paço do Saldanha. São mostrados aí quadros a óleo e crayon; trabalhos em marcenaria; chapéus; encadernações; esculturas; tapeçarias etc. O sucesso das mostras permanece no decorrer dos anos; a de 1888, por exemplo, apresenta 2 mil objetos de 500 expositores.
A instituição tem perfil liberal, o que pode ser aferido pela presença de abolicionistas e de figuras ligadas ao Partido Liberal em seus quadros. A proximidade do movimento abolicionista da cidade pode ser atestada pela série de conferências pró-abolição em sua sede, em 1882, e pela presença dos libertos nas salas de aula. Com o início da república, nota-se um aumento significativo do número de sócios, cifra que atinge o ápice em 1898: 2.216 associados. Nesse período as subvenções estatais são responsáveis por 53% da receita, o restante é fruto de jóias e mensalidades dos sócios. O aumento de associados, do apoio estatal e a organização dos alunos, que criam em 1890 o jornal A Verdade, correspondem aos primeiros anos do período republicano.
Depois, a instituição conhece acentuado declínio, sobretudo pela perda de associados, em grande parte operários, que se retiram em função do surgimento de instituições de caráter reivindicatórios (o Centro Operário da Bahia, por exemplo). Os números falam por si: entre 1905 e 1906, a instituição conta apenas com 471 membros. Em 1910, a situação é considerada alarmante, com a sensível diminuição do auxílio estatal. A mudança do nome ocorrida em 1911 - para Associação Liceu de Artes e Ofícios - corresponde a uma alteração na orientação da casa, com a restrição progressiva da beneficência e o fortalecimento da educação profissional. Mesmo assim a instituição mantém sua vocação de incentivo à organização dos trabalhadores: entre outros eventos realiza a homenagem ao dia do trabalho, em 1915, e a assembléia dos professores municipais, realizada no salão nobre, em virtude da greve da categoria, em 1918.
Nos anos 1920, a casa reconquista a vitalidade e passa a ser considerada de "utilidade pública" por uma lei de 10 de agosto de 1917. Nesse período criam-se os Cinemas Liceu, em 1921, e Popular, em 1936, modernizam-se as oficinas de marcenaria e iniciam-se outras, como as de mecânica e de fundição, com novas aparelhagens. A expansão das oficinas ("verdadeiras fábricas", dizem alguns) é responsável pelo aumento da receita. Datam ainda dessa época as reformas das casas que compõem o patrimônio do Liceu. No período posterior à Segunda Guerra Mundial (1939 - 1945), a instituição conhece nova crise com falta de matérias-primas e de recursos. Diante disso, instala-se uma política de arrendamentos do espaço: em 1947, é arrendado um andar da casa anexa ao Paço do Saldanha para a rádio Excelsior da Bahia e de outros cômodos para a prefeitura de Salvador. O Cinema Liceu é arrendado, a partir de 1960, à empresa Cinemas Verdes Ltda. A fase de decadência se faz notar ainda pela grande concorrência que a oficina de marcenaria (responsável pelo centro da produção) passa a sofrer em virtude da diversificação da indústria moveleira. A criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial - Senai, em 1942, com unidades em Salvador, é mais um elemento a contribuir para o declínio do Liceu. Um grande incêndio de 1968 aprofunda esse processo de crise, com a perda de parte significativa do patrimônio. Mesmo assim, o liceu continua a funcionar, precariamente, em dois pavimentos em cima do Cinema Liceu.
Outro período de reconstrução ocorre em 1988. Funcionando entre 1989 e 1992 na sede do Instituto de Cacau da Bahia, o "novo liceu" conta com o apoio da Fundação Odebrecht. Inicia-se a recuperação da sede histórica, no bojo de um processo de revitalização do centro histórico de Salvador. Oficinas experimentais são implantadas: de som e instrumentos, movimento (capoeira), farmácia, alimentação, informática, artes gráficas, móveis e madeiras, comunicação visual (atual vídeo) e construção civil (atual manutenção e recuperação predial). Ações educativas internas e externas, por sua vez, são realizadas pelo Centro de Orientação e Referência do Adolescente - Cora - Liceu. O projeto Teatro Vai à Escola, de 1993, e a série de parcerias - Projeto Axé, Instituto Cultural Brasil - Alemanha, Fundação Gregório de Matos, Universidade Federal da Bahia - UFBA, entre outros - mostram a nova face da instituição, que em 1992, retorna ao Paço do Saldanha. Com o programa de ocupação progressiva do quarteirão, em 1995, é reaberto o prédio histórico, com a inauguração do Memorial do Liceu.
Exposições 2
Fontes de pesquisa 3
- BARROS, Alvaro Paes. O Liceu de Artes e Oficios e seu fundador no primeiro centenário da grande instituição: depoimento histórico. Rio de Janeiro: Liceu de Artes e Oficios, 1956. 394 p., il.
- CUNHA, Luiz Antonio. O ensino industrial - manufatureiro no Brasil: origem e desenvolvimento. Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais - FLACSO. Disponível em: [http://www.flacso.org.br/data/biblioteca/392.pdf]. Acesso em: ago. 2006.
- LEAL, Maria das Graças de Andrade. A Arte de ter um ofício (1872-1996): Liceu de Artes e Ofício da Bahia. Salvador: Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, 1996. 402 p., il.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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LICEU de Artes e Ofícios da Bahia.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/instituicao17451/liceu-de-artes-e-oficios-da-bahia. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7