Carnaval
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Festa popular de origens e manifestações múltiplas, o Carnaval representa, de modo amplo, o período anterior a um intervalo de abstinência religiosa, tal qual a Quaresma cristã. Em geral, trata-se de animadas celebrações, em espaços públicos, de grandes grupos de pessoas ao longo de alguns dias marcados pela subversão de hierarquias cotidianas. Forte mobilizador e transformador de repertórios comunitários, culturais, sociais e econômicos, encontra no Brasil um de seus terrenos mais férteis, sobretudo durante o século XX, quando se associa a gêneros musicais como a marchinha, o samba, o frevo e o axé, adquirindo status de síntese da identidade nacional.
A ideia de quarenta dias de penitência para os cristãos, de modo a emular os sofrimentos de Jesus no deserto, é instituída pelo papa Gregório I (590-604). Mas é apenas no século XI que a Igreja Católica fixa esse período no calendário, antes do Domingo de Páscoa. Seu início, em fevereiro ou março, dá-se na chamada Quarta-feira de Cinzas. Com a impossibilidade de ingerir carne, comunidades europeias se mobilizam às vésperas do jejum para um amplo desfrute dos prazeres da gula. O termo italiano carnevale, derivado do latim carnem levare ("eliminar a carne"), pode estar o étimo do termo carnaval.
Fato é que a tradição cristã do Carnaval também deita raízes em festividades pagãs. Por exemplo: a Lupercália, ritual romano da Antiguidade, celebrada em meados de fevereiro com diversas manifestações licenciosas, tem um sentido purificador e agregador de bons agouros. O Carnaval brasileiro contemporâneo também guarda certa simetria com aspectos gregos das festas: a folia é sua dimensão dionisíaca, ao passo que o seu lado apolíneo está no espetáculo. Reitere-se, também, que certas culturas da África contam com festivais anuais sucedidos por extensos períodos de resguardo. A realização do odwira entre os axânti, povo do Sul de Gana e áreas adjacentes de Togo e da Costa do Marfim, encontra paralelos em outros povos do continente africano, o que, no contexto da diáspora africana na América, contribui para explicar o enorme aporte histórico de afrodescendentes à cultura carnavalesca.
Em meados do século XVI, o entrudo, festa popular vinda de Portugal para Pernambuco, de onde se espalha pela colônia, torna-se uma das primeiras brincadeiras de Carnaval a se difundir no Brasil. Este folguedo constitui-se no arremesso de farinha, polvilho e limões-de-cheiro (às vezes com urina) em outras pessoas. Apesar da inflexibilidade hierárquica e da gigantesca desigualdade econômica e racial que marcam o período colonial, há registros de que tanto escravizados quanto proprietários de terra participam do entrudo.
Na passagem do Império (1822-1889) para a República, marcada pela abolição da escravatura, uma nova forma de celebração do Carnaval ganha as ruas da então capital do país, os cordões. Criados por membros subalternizados da população, como negros e brancos pobres, representam uma maneira de escapar à repressão ao entrudo. À frente do cordão, um mestre a cujo apito todo o grupo que desfila deve obedecer. A percussão sobressai, com cuícas, reco-recos e adufes. Os cordões confeccionam requintados estandartes e constituem importante embrião organizativo das futuras escolas de samba.
Da mesma forma, os ranchos, outra refinada expressão daquele momento histórico, contribuem para a posterior consolidação das agremiações. Surgem na região portuária do Rio de Janeiro pelo esforço de migrantes da Bahia e de Pernambuco, entre os quais o Hilário Jovino Ferreira (c. 1873-1933), o Lalu de Ouro, responsável do rancho Rei de Ouro, que passa a desfilar no Carnaval em 1893. Antes, as apresentações se concentram no período natalino, até o Dia de Reis. No Carnaval da Bahia, agrupamentos constituídos só por pessoas negras, entre os quais a Embaixada Africana e os Guerreiros d’África, desfilam entre 1892 e 1905, quando são proibidos. Influenciadas por pressupostos “civilizatórios” europeus, as elites e a classe média das cidades brasileiras, atentas a diferenciar-se das camadas populares (e negras) nos desfiles, formam as sociedades carnavalescas e adotam, no início do século XX, o formato de corso. No Rio, a então recém-inaugurada Avenida Central (hoje Avenida Rio Branco), transforma-se em passarela para carros, onde serpentinas e confetes são arremessados pelos passageiros, além dos lança-perfumes. A modalidade faz adeptos em São Paulo, na Avenida Paulista dos barões do café.
Uma agremiação de rancho carioca, a Ameno Resedá, inova com a ideia de eleger um enredo distinto para o desfile carnavalesco de cada ano. As alas do cortejo, bem como os figurinos, passam a obedecer ao tema estipulado pelo grêmio, autodenominado “rancho-escola” com a função de ensinar os foliões a construir alegorias e adereços. As primeiras escolas de samba efetivamente se formam nas décadas de 1920 e 1930, com a popularização do samba urbano carioca favorecida pela consolidação do rádio e da indústria fonográfica. De partida, essas escolas têm o intuito de garantir sociabilização para as comunidades em que se formam, majoritariamente negras, nos morros da cidade. Logo, porém, são estimuladas a competir — a primeira disputa ocorre no Carnaval de 1932, levando dezenove agremiações para o cortejo na Praça Onze, inclusive Mangueira e Unidos da Tijuca. O conceito se espalha: Belo Horizonte, São Paulo, Porto Alegre, São Luís e Belém já contam com relevantes agremiações nos anos 1950. A partir da década de 1970, os desfiles adquirem status de espetáculo comercial televisionado, em particular no Rio de Janeiro, onde o modelo do “sambódromo”, aberto em 1984 na Avenida Marquês de Sapucaí e depois imitado em outros locais, torna-se no principal chamariz do Carnaval.
Em Salvador, um grupo de estivadores e adeptos do candomblé funda em 1949 o cordão Afoxé Filhos de Gandhy, com desfiles carnavalescos importantes para a exaltação de elementos da cultura afro-baiana. O Ilê Aiyê, a partir de 1975, primeiro bloco formado só por negros no Carnaval soteropolitano, reforça politicamente a vinculação com culturas africanas. Também é da Bahia um dos mais cativantes símbolos do Carnaval contemporâneo: o trio elétrico. Inventado em 1951 por percussionistas, populariza-se duas décadas depois com a banda Novos Baianos, antes de se elitizar. Nos anos 1990, a axé-music sobe nos trios elétricos para garantir a nova sonoridade do Carnaval de Salvador. Mas é em Recife que o maior bloco de Carnaval do mundo, o Galo da Madrugada, mobiliza centenas de milhares de foliões desde 1978. Embalados pelo frevo, começam suas atividades no raiar do sábado de Carnaval. Movimento recente reanima blocos de rua paulistanos e cariocas, onde cordões como o Bola Preta, o mais antigo, mantêm a tradição secular de desfilar ao som de marchinhas.
Antigo e diverso, o Carnaval encontra no Brasil o seu estado da arte: reinventada sob o peso das desigualdades de uma sociedade excludente, a folia profana suspende (ainda que de modo ilusório) as brutalidades que separam negros e brancos, homens e mulheres, ricos e pobres. Por alguns dias, os diferentes se igualam na vontade de esquecer as preocupações e angústias que voltam no ano que está só começando.
Fontes de pesquisa 5
- CONHEÇA A HISTÓRIA do Carnaval. PUC-RS, Porto Alegre, 21 fev. 2020. Disponível em: https://www.pucrs.br/blog/conheca-a-historia-do-carnaval. Acesso em: 1 ago. 2021.
- DINIZ, André. Almanaque do carnaval: a história do carnaval, o que ouvir, o que ler, onde curtir. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
- LOPES, Nei. Dicionário escolar afro-brasileiro. 2. ed. São Paulo: Selo Negro Edições, 2015.
- LOPES, Nei; SIMAS, Luiz Antonio. Dicionário da história social do samba. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2020.
- NETO, Lira. Uma história do samba: as origens. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
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CARNAVAL.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/termo14366/carnaval. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7