Adirley Queirós
Texto
Adirley Queirós de Andrade (Morro Agudo de Goiás, Goiás, 1970). Diretor, roteirista, produtor. Seus filmes marcam renovações consideráveis no trânsito entre os registros documentais e ficcionais no cinema brasileiro contemporâneo. Investiga os diferentes modos de elaborar a história, a memória e o imaginário de um território periférico.
Aos três anos de idade, instala-se com a família em Brasília. No início dos anos 1970, muda-se para Ceilândia, a recém-criada cidade-satélite na qual Adirley Queirós reside e realiza a maior parte de sua produção cinematográfica. Ingressa, aos 28 anos, no curso de Comunicação Social, com habilitação em Cinema, da Universidade de Brasília (UnB).
O documentário Rap, o canto de Ceilândia (2005) é seu primeiro filme. O curta apresenta como eixo principal entrevistas com rappers, cujas falas e composições narram a história de Ceilândia. Os registros de shows, além de imagens históricas da cidade, são inseridos na montagem e marcam, desde o início, o interesse do cineasta pelo confronto entre a retomada de documentos do passado e a memória dos habitantes da Ceilândia. Esse grupo íntimo de amigos e parceiros, que compõe a equipe desse primeiro filme, segue colaborando com o diretor nos trabalhos posteriores. Em 2006, fundam o coletivo Ceicine (Coletivo de Cinema de Ceilândia), dedicado a criar formas de se contrapor ao modelo de produção do cinema industrial.
No seu primeiro longa-metragem, A cidade é uma só? (2011), o diretor aborda a expulsão dos migrantes de Brasília, o processo que dá origem à cidade de Ceilândia. Registros de cinejornais e filmes de propaganda da construção da cidade de Brasília e da Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), de 1971, elaborada para convencer a população pobre a aceitar as remoções para a periferia, são contrapostos às elaborações da memória dos personagens. O filme se destaca, por sua vez, ao mesclar entrevistas clássicas e elaborações ficcionais, além de forjar falsos arquivos históricos. Enquanto Nancy Araújo narra a experiência verídica da remoção de sua família da vila operária do IAPI, Zé Bigode (Welligton Abreu) e Dildu (Dilmar Durães) encenam um vendedor de terrenos e um político. A experimentação com a ficção permite acrescentar camadas de reinvenção dos imaginários. Nesse trânsito entre diferentes registros, o cineasta atualiza e reelabora métodos do realizador e etnólogo francês Jean Rouch (1917-2004), decisivo para a constituição da linguagem dos cinemas modernos de autor, desde a Nouvelle Vague ao Cinema Novo brasileiro1.
Em gesto que marca a história do cinema brasileiro recente, assina com o coletivo Ceicine uma carta com a qual anuncia a retirada de A cidade é uma só? da seleção oficial do Festival de Brasília. O coletivo denuncia a seleção viciada e a ausência de ações contundentes de democratização do acesso ao cinema nas periferias. O longa, no entanto, circula e recebe diversos prêmios, como o de Melhor Filme no Festival de Tiradentes de 2012.
Com Branco sai, preto fica (2014), premiado como Melhor Filme no 47º Festival de Brasília, o realizador exacerba as estratégias de ficcionalização para lidar com memórias e traumas apagados pela história. Na narrativa, Dimas Cravalanças (Dilmar Durães) é um viajante intergaláctico incumbido de desvendar a verídica invasão policial do baile black do Quarentão. Ocorrida em 1986, a ação matou e feriu jovens negros de Ceilândia. Em diálogo com os códigos da ficção científica, filma a cidade como um cenário distópico entre ruínas e tecnologias futuristas.
Para explicitar seu processo, radicalizado nesse filme, o diretor cunha o termo “etnografia da ficção”. Parte-se de uma proposição ficcional, com argumento sólido e elementos de composição que criam a atmosfera da narrativa: figurinos, objetos de arte e ambientes não naturalistas. No entanto, o roteiro é solto. Propõe-se que os atores tomem a ficção como ponto de partida para uma experiência imprevisível que se dá na relação com os elementos cênicos e a câmera. Filma-se, então, como quem realiza uma etnografia, sobretudo, a partir do gesto de observação. O uso da câmera fixa e planos de longa duração favorecem a captura das falas e movimentos corporais não totalmente programados.
Era uma vez, Brasília (2017) tem estreia internacional no Festival de Locarno, na Suíça, e recebe os prêmios de Melhor Direção, Fotografia e Som no 50º Festival de Brasília. Se nos filmes anteriores o encontro com o passado e a rememoração são decisivos, nesse longa interessa, sobretudo, o confronto com processos históricos atuais. Sob a atmosfera distópica criada pela ficção, a montagem sobrepõe faixas sonoras das declarações de voto durante o processo do impeachment de Dilma Rousseff, além de discursos de seu sucessor imediato, Michel Temer. Em cena, o registro documental das manifestações em curso a favor da retirada da presidenta também se choca com a ficção a partir da performance do personagem Marquim (Marquim da Tropa [1970]), que ronda o ambiente com máscaras futuristas. O desenho de som, com ruídos de chaves e portas de cadeia, investe no campo sensorial como forma de exprimir a experiência de imobilidade e enclausuramento dos personagens.
A linguagem e o modo de produção de Adirley Queirós são decisivos para as inovações do cinema brasileiro da década de 2010. Sua filmografia é crucial para dar a ver perspectivas não hegemônicas de elaboração do território e do imaginários periféricos. O diálogo com a ficção científica impacta, ainda, uma gama de cineastas que passam a abordar o presente a partir dos artifícios do gênero.
Notas:
1. Jean Rouch (1917-2004) é um dos fundadores da antropologia visual. Usa o cinema como ferramenta primordial para etnografia, mas se abre às possibilidades criativas da ficção. Esse modo inovador de abordagem o leva a ser admirado por diversos cineastas que, na virada para os anos 1960, buscam encontrar novas possibilidades de se relacionar com o real que não se restrinjam às fronteiras rígidas entre documentário e ficção.
Obras 2
Fontes de pesquisa 11
- ALVES DE LIMA, Tatiana Hora. Utopias de Brasília no cinema: o desvio contra a arquitetura e a história. 256p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019.
- GUIMARÃES, Victor. O desvio pela ficção: contaminações no cinema brasileiro contemporâneo. Devires, Belo Horizonte, v. 10, n. 2, pp. 58-77, 2013.
- LEANDRO, Anita. Montagem e história: uma arqueologia das imagens de repressão. In: BRANDÃO, Alessandra Soares; SOUSA, Ramayana Lira de. A sobrevivência das imagens. Campinas: Papirus, 2015, pp. 103-120.
- LINDEPERG, Sylvie. O destino singular das imagens de arquivo: contribuição para um debate, se necessário, uma ‘querela’. Devires, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, pp. 12-27, jan.-jun. 2015.
- MESQUITA, Claudio. Um drama documentário? Atualidade e história em A cidade é uma só? Revista Negativo, [s.l.], v. 1, n. 1, pp. 70-85.
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- QUEIRÓS, A. Por um cinema infiltrado: entrevista com Adirley Queirós e Maurílio Martins a propósito de Branco sai, preto fica (2014). DOC On-line – Revista Digital de Cinema Documentário, n. 18, 2015, pp. 389-413. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=5358973. Acesso em: 26 out. 2018.
- QUEIRÓS, Adirley. [Entrevista concedida a] Amanda Seraphico com contribuição de Maria Bogado. Revista Beira, 19 out. 2015. Disponível em: https://medium.com/revista-beira/na-manh%C3%A3-do-dia-16-de-setembro-de-2015-tive-u m-encontro-via-skype-com-adirley-queir%C3%B3s-para-d2541b63eb28. Acesso em: 29 dez 2019.
- REZENDE, Mara. Movimentos de moradores: a experiência dos inquilinos de Ceilândia. In: PAVIANI, Aldo. (Org.). A conquista da cidade: movimentos populares em Brasília. 2.ed. Brasília: Editora UnB, 1998. pp. 209-230.
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ADIRLEY Queirós.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa642288/adirley-queiros. Acesso em: 05 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7