Carmélia Alves
Texto
Carmélia Alves Curvello (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro 1923 - Idem, 2012). Cantora. Inicia como caloura de programas de rádio. Nos anos 1940 é contratada pela Rádio Mayrink Veiga e passa a atuar como crooner no Copacabana Palace, tendo suas apresentações transmitidas ao vivo pela Rádio Nacional. Casa-se com o cantor Jimmy Lester (1914-1998).
Grava seu primeiro disco em 1943, com os sambas Quem dorme no ponto é chofer (Assis Valente) e Deixei de sofrer (Dino e Popeye do Pandeiro). Em 1944 grava a marcha Papagaio de Berlim, de Alberto Ribeiro.
Em 1953 lança disco em apoio aos flagelados da seca, com as faixas Ajuda Teu Irmão (Teixeira) e Adeus Maria Fulô (Teixeira e Sivuca). Participa de shows beneficentes no Ceará, com o pianista Bené Nunes, Jimmy Lester e Sivuca. No mesmo ano grava Baião em Paris, de H. Teixeira, antes de sua primeira turnê pela Europa. Atua nos filmes Tudo Azul (1951) – no qual interpreta Eu Sou o Baião (Teixeira) –, Agulha no Palheiro (1953), Carnaval em Caxias (1954) e Carnaval em Lá Maior (1955). Regrava clássicos da parceira entre Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, como Paraíba, Asa Branca, Qui Nem Jiló, Assum Preto e No Meu Pé de Serra (1956). Entre os anos 1950 e meados dos anos 1960 realiza diversas turnês, passando por Argentina, Chile, Alemanha, Portugal, França e União Soviética.
Em 1976 seus maiores sucessos são reeditados pela série de discos Ídolos MPB, da Continental. Realiza show com Luiz Gonzaga no Teatro João Caetano (1977), cuja gravação é relançada em CD em 1993. Em 1999 grava CD dedicado a Jackson do Pandeiro e Gordurinha, com a participação de Inezita Barroso, Luiz Vieira e Elymar Santos. Integrante do conjunto Cantoras do Rádio desde a primeira formação (1987), apresenta-se em 2001 no Teatro de Arena no show Estão Voltando as Flores, ao lado de Carminha Mascarenhas, Ellen de Lima e Violeta Cavalcanti. Lançado em CD em 2002, este encontro é tema do documentário Cantoras do Rádio (2009), de Gil Barone.
Análise
Carmélia Alves ocupa o posto de “rainha” na chamada Corte do Baião. Atuando ao lado do “rei” e do “doutor” do baião, respectivamente, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, a cantora contribui significativamente para o projeto dos compositores de difundir a música nordestina no Sudeste. Devido a sua identificação com a cultura nordestina, Carmélia logo se torna amiga de Humberto, conhecendo em primeira mão, antes de se tornarem clássicos, suas parcerias com Gonzaga.
O baião – corruptela de “baiano” – figura como esteio deste projeto, por possuir características de fácil assimilação pelo grande público urbano. O alcance da iniciativa ultrapassa inclusive as expectativas iniciais, tomando repercussão internacional. Contribui para a aceitação do gênero no exterior o sucesso do filme O Cangaceiro (1953), premiado como Melhor Filme de Aventura e Melhor Trilha Sonora em Cannes. Ironicamente, Carmélia grava o “Baião de Ana”, dos italianos Roman Vatro e F. Giordano, versão de Caribé da Rocha, em 1954.
Dentro do país, o projeto vem ao encontro da política cultural de valorização das identidades regionais no período Pós-Guerra, justamente no momento em que a programação radiofônica é inundada por ritmos estrangeiros, como os latinos bolero e rumba, e o jazz norte-americano. O reinado do baião se estabelece também em meio a um acalorado debate acerca da definição do conceito de música popular, que mobiliza musicólogos e folcloristas em meados dos anos 1950. Observando a produção musical de seu tempo, Oneyda Alvarenga chega à definição de “música popular” como de autoria conhecida, feitas sob técnicas mais ou menos aperfeiçoadas e transmitida pelos meios de comunicação em massa, o que condiz com as características da música inventada por Gonzaga e Teixeira.
Ao contrário de outros gêneros que surgem de maneira espontânea, o baião é fruto de um planejamento, que estiliza a adapta ao paladar urbano a música tradicional nordestina. Apropriando-se da base rítmica, variante do lundu desenvolvida no interior da Bahia no século XIX, o baião mantém em geral a estrutura assentada no acordeão, zabumba e triângulo - síntese instrumental criada por Luiz Gonzaga -, e incorpora elementos da moderna música urbana, com arranjos criados por renomados maestros das rádios e gravadoras, como Radamés Gnattali, presente nas gravações de Camélia. A ascensão do baião ocorre concomitantemente ao declínio da marcha e à proibição dos cassinos – palco de muitos músicos populares –, dotando o cenário musical e a indústria do entretenimento de novo ritmo dançante, o que explica em parte seu êxito. Ao lado do samba, o gênero é tomado como novo símbolo da música nacional, conquistando espaço na mídia impressa e recebendo a gravação por intérpretes consagrados publicamente em outros gêneros. Alcança o auge entre 1949 e 1951, através dos compositores citados e outros, como Luís Vieira, Luís Bandeira, Zé Dantas, Hervê Cordovil, e intérpretes como Ivon Curi, Emilinha Borba, Dalva de Oliveira, Claudette Soares – a “princesinha do baião”. Atinge diferentes segmentos sociais, sendo executado inclusive em espaços frequentados pela nata da sociedade paulistana, como a elegante boate Jequiti, na qual Carmélia atua. O que é outra novidade, pois na época não é comum crooner feminina na cidade.
Carmélia traz já em seus primeiros contatos musicais a proximidade com o gênero que se estabelecerá: filha de migrantes nordestinos, cresce aos sons de animadas reuniões de repentistas em sua família. Com dicção perfeita e habilidade para falar e cantar rápido, a cantora transforma-se numa importante referência do gênero, fazendo uma mediação entre as matrizes da música nordestina e o padrão estético já consolidado na indústria radiofônica e fonográfica. Emprega expressões regionais sem fazer uma caricatura do sotaque nordestino. A cantora confere feições peculiares a suas interpretações. É o caso do baião Trem ô-lá-lá (1950), a princípio composta por Lauro Maia e Humberto Teixeira em ritmo de toada. A interpretação mais acelerada de Carmélia, apresentada no Golden Room do Copacabana Palace é imediatamente aceita e preferida pelos compositores. O mesmo ocorre com o balanceio Trepa no coqueiro (Ari Kerner), em que a cantora acelera os versos, conferindo à estrofe o aspecto de trava-língua: “Trepa no coqueiro / tira coco / jipe, jipe / nheco, nheco / no coqueiro olirá”. Nesta música está presente outro elemento bastante recorrente no gênero: a malícia com sutileza – em versos como “os passeios de Maria/ faz papai e mamãe chorar” –, aspecto elogiado pela cantora em seus depoimentos nos anos 2000. A cantora também contribui para alavancar a carreira de outros músicos, como o acordeonista Sivuca, que ela conhece em Recife e convida para gravar em São Paulo.
A escuta de Carmélia também é formada através dos ritmos mais populares no rádio em sua juventude. Sua carreira se inicia como a de muitas cantoras da época: cantando o repertório já consolidado de intérpretes como Carmen Miranda. Em suas primeiras gravações há um grande volume de marchas e sambas, também executadas no rádio, com instrumentação do regional de Benedito Lacerda. Sua extensão vocal, assim como a da “pequena notável”, é de meio-soprano, bastante modulada, o que favorece a aproximação inicial com seu repertório. Além deste, Carmélia incorpora de Carmen elementos de sua interpretação, que mescla ao canto o ritmo da fala coloquial. Pela sua voz passam sambas-enredo, gravados no disco Sambas Enredo das Escolas de São Paulo, em parceria com Geraldo Filme – de autoria de sambistas como Doca e Xangô –; marchas, frevos, sambase até mesmo a toada tradicional gaúcha “Carreteiro”, adaptada por Caco Velho e Piratini, e a toada “Cevando o Amargo”, de Lupicínio Rodrigues e Piratini. No disco Bossa Nova com carmélia Alves (1964), do selo Mocambo, mistura canções bossanovistas notórias, como “O Barquinho”, “Corcovado” e só “Danço Samba”, com sambas de balanço, como “Deixa a Nega Gingar” e “Na Cadência do Samba”, e até a “ Valsa de uma cidade”
Fontes de pesquisa 5
- DREYFUS, Dominique. Vida de viajante: a saga de Luiz Gonzaga. São Paulo: Editora 34, 1996. 349p. (Coleção Ouvido Musical).
- MARIZ, Vasco. A canção brasileira: Erudita, Folclórica Popular. 4ª ed. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL/MEC, 1980.
- NAPOLITANO, Marcos. A música brasileira na década de 50. Revista USP, São Paulo, nº 87, pp. 56-73, set./out./nov. 2010.
- SEVERIANO, Jaime. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Editora 34, 2008. 504p.
- TEIXEIRA, Humberto, JOBIM, Antonio Carlos, JOBIM, Ana Lontra, DUMONT, Denise. Cancioneiro Humberto Teixeira: biografia. Rio de Janeiro: Jobim Music, 2006. 2v. 188p.
Como citar
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CARMÉLIA Alves.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa633427/carmelia-alves. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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