Freitas Valle
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Biografia
José de Freitas Valle (Alegrete, RS, 1870 – São Paulo, SP, 1958). Político, advogado, professor, mecenas e poeta. Realiza os estudos preparatórios em Pelotas, Rio Grande do Sul, transferindo-se para São Paulo em 1886, onde se matricula na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Em 1887, publica Rebentos, reunindo seus primeiros versos e traduções de poemas. Forma-se bacharel em ciências jurídicas e sociais em 1891, e abre em sociedade um escritório de advocacia. Em 1893, é aprovado no concurso para a cadeira de Francês e Literatura Francesa do Ginásio Estadual de São Paulo, lecionando na instituição até 1936. Em 1895, é nomeado subprocurador fiscal do Estado de São Paulo, cargo que exerce até 1937.
Em 1903, publica poemas escritos em francês na revista simbolista mineira Horus, usando o heterônimo Jacques D'Avray. Nesse ano, elege-se deputado estadual por São Paulo, sendo reeleito consecutivamente entre 1907 e 1922. Em 1904, adquire o terreno da então Vila Gerda, rebatizada Villa Kyrial, onde constrói uma mansão. Até a década de 1930, organiza jantares, saraus e palestras, recebendo artistas, escritores e políticos brasileiros e estrangeiros. Em 1905, participa da fundação da Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pesp) e, em 1911, da comissão organizadora da 1ª Exposição Brasileira de Belas-Artes. É sócio-fundador da Sociedade de Cultura Artística, criada em 1912. Participa da Comissão Fiscal do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, regulamentado nesse ano.
Influente na política educacional do estado, decide pessoalmente sobre as bolsas concedidas a diversos artistas, como Tulio Mugnaini (1895-1975), Victor Brecheret (1894-1955) e Anita Malfatti (1889-1964). No ano seguinte, patrocina a primeira exposição do pintor Lasar Segall (1891-1957) em São Paulo. Em 1914, promove o 1º Ciclo de Conferências na Villa Kyrial. Entre 1916 e 1917 edita, como Jacques D'Avray, a primeira e a segunda séries de seus Tragipoèmes, constando, cada uma, de sete peças. Algumas delas são musicadas e interpretadas em São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires, entre 1916 e 1919. Nesse ano, promove, em colaboração com Paulo Prado (1869-1943), exposição de pinturas impressionistas, ao lado de esculturas de Antoine Bourdelle (1861-1929), Auguste Rodin (1840-1917) e Henri Laurens (1885-1954) no hall do Theatro Municipal de São Paulo. Entre 1921 e 1924, organiza mais quatro edições anuais do Ciclo de Conferências na Villa Kyrial.
É eleito senador estadual em 1922, cargo que ocupa até ser deposto, em 1931, após a Revolução de 1930.1 Nesse período, publica dois livros tendo a educação pública como tema, Ensino Público e a sua Solução no Estado de São Paulo (1921) e O Ensino Público no Governo Washington Luís (1924). Em 1948, é eleito membro da Academia Brasileira de Letras (ABL). Depois de sua morte, parte de seus quadros são doados para o Ginásio do Estado, a Pinacoteca e o Museu Paulista. A Villa Kyrial é demolida em 1961.
Comentário crítico
Filho de ricos estancieiros do Rio Grande do Sul e estudante de direito em São Paulo, com apenas 18 anos Freitas Valle publica seus primeiros versos no livro Rebentos, acompanhados de traduções de poemas. O livro recebe duras críticas, fazendo com que o autor procure recolher todos os exemplares a venda. A partir de então, passa a assinar com o heterônimo Jacques D’Avray, escrevendo apenas em francês. As principais obras assinadas por D'Avray são as duas séries de Tragipoèmes, editadas entre 1916 e 1917. Não ultrapassando tiragens de 81 exemplares fora de comércio, os livros são concebidos como objeto de arte. Os tipos de papel, a diagramação e o design, composto de ilustrações e recursos gráficos refinados, formam parte da experiência sinestésica pretendida pelo autor. Criados para serem musicados e interpretados, os tragipoemas são compostos em verso livre, soneto ou rondel, e narram, no formato de um pequena esquete teatral, uma história que o autor teria presenciado. Revelam uma atmosfera lúgubre e penumbrista, de influência simbolista, na qual desfilam personagens tradicionalmente melancólicos, como o louco, o cego, o leproso, o náufrago e o palhaço.
Apesar das incursões na poesia, é como mecenas e incentivador das artes em São Paulo que Freitas Valle dá sua maior contribuição para o desenvolvimento da arte no país. Essa atividade tem início ainda na primeira década do século XX, quando adquire, com a herança recebida após a morte do pai, o terreno de 7.000 m², na região da Vila Mariana, onde constrói a Villa Kyrial. O nome tem raiz no termo grego kyrios (deus, senhor) e nos resquícios do imaginário e das práticas senhoriais que marcaram a Primeira República, seja no âmbito da vida doméstica ou da vida política. Tomando parte em uma prática social comum entre as famílias da elite oligárquica do período, em sua “vila senhorial” Freitas Valle promove salões, saraus e conferências que marcam a chamada belle époque paulistana. A mansão ricamente decorada ainda abriga uma coleção importante de quadros, afrescos, esculturas, objetos de decoração e antiguidades, encomendados ou adquiridos em viagens à Europa. Os salões são restritos a convidados e ocorrem em diferentes dias da semana, com programações variadas. Na São Paulo ainda pouco aparelhada de instituições culturais, esses encontros representam o que o escritor Mário de Andrade (1893-1945) define como um “oásis a que a gente se recolha semanalmente, livrando-se das falcatruas da vida chã”2. Sucedendo aos de dona Veridiana Prado (1825-1910) e outras famílias da época, os salões de Freitas Valle logo se distinguem por excentricidades que marcam seu anfitrião. Uma delas é a criação da “ordem dos gourmets”, espécie de sociedade hierarquizada dedicada à apreciação de bebidas, comandada por Valle e com integrantes políticos da importância de Washington Luís (1869-1957) e Altino Arantes (1876-1965). Havia ainda os perfumes de comércio restrito, desenvolvidos pelo perfumista Freval; os pratos exóticos elaborados pelo maitre Jean Jean, outro heterônimo do mecenas, degustados por Freitas Valle do alto de sua cadeira elevada em relação aos demais; ao final dos encontros, cantava-se ainda o “hino dos cavalheiros da Villa Kyrial”, composto por Valle.
Mas o que marcou os salões da Villa Kyrial como importante foco de debate cultural foram os ciclos de conferências ocorridos entre 1914 e 1924, do qual participam modernistas como Mário de Andrade, Oswald de Andrade (1890-1954), Guilherme de Almeida (1890-1969), Lasar Segall e Blaise Cendrars (1887-1961), ao lado de escritores como Coelho Netto (1864-1934) e Martins Fontes (1884-1937), além do próprio Freitas Valle, demonstrando o caráter heterogêneo, porém respeitoso e aberto, de sua programação cultural. Entre os temas é possível encontrar desde o filósofo grego Epicuro até o cubismo e o teatro de Ibsen. Também nos salões da Villa Kyrial se apresentaram os músicos Heitor Villa-Lobos (1887-1959) e Darius Milhaud (1892-1974), constituindo oportunidade rara no país de apreciação de suas experimentações musicais.
Fora do espaço da Villa Kyrial, coube a Freitas Valle importante papel como parlamentar preocupado com a educação pública no estado de São Paulo. Ocupou cargo de presidente da Comissão de Instrução Pública e Higiene da Câmara dos Deputados de São Paulo, reorganizando durante seus mandatos a Biblioteca Pública, e colaborando nos anos iniciais da Pinacoteca do Estado. Instituiu ainda o orfeão escolar (ensino de canto cantoral) e colaborou na criação da Escola Normal do Brás. No campo do ensino artístico, foi o principal articulador do Pensionato Artístico do Estado, envolvendo-se e controlando pessoalmente a distribuição de bolsas e as atividades dos pensionistas na Europa. Através do pensionato, artistas como Túlio Mugnaini (1895-1975), Wasth Rodrigues (1891-1957), Victor Brecheret (1894-1955), Anita Malfatti (1889-1964), músicos como Guiomar Novaes (1894-1979) e Souza Lima (1898-1982), entre outros, tiveram oportunidade de passar anos aperfeiçoando-se na Europa. Embora criticado por Monteiro Lobato (1882-1948) e Oswald de Andrade, que o julgavam um instrumento de europeização do artista nacional, o pensionato certamente contribuiu não apenas para a trajetória individual de cada pensionista, mas também para a dinamização dos debates artísticos na cidade.
De acordo com a historiadora Marcia Camargos, a atuação de Freitas Valle pode ser compreendida como um elo de transição, aproximando um modo de sociabilidade marcado por valores oligárquicos das forças de renovação social e cultural em desenvolvimento, especialmente a partir da década de 1920. O salão que manteve durante mais de duas décadas na Villa Kyrial foi “a ponte necessária e imprescindível entre o antigo regime e a modernidade que se delineava no horizonte”.3
Notas
1 Em meio à crise econômica mundial e às disputas internas pelo poder político e econômico, o presidente eleito, Júlio Prestes, é deposto. Getúlio Vargas assume a presidência do Brasil através de um golpe de estado.
2 ANDRADE, Mário. De São Paulo, Illustração Brasileira, Rio de Janeiro, mar. 1921, p. 20. Citado em CAMARGOS, Marcia. Villa Kyrial: crônica da belle époque paulistana. São Paulo: Editora Senac, 2001, p. 44.
3 CAMARGOS, M. Op. cit., p. 213.
Como citar
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FREITAS Valle.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa467510/freitas-valle. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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