Damiano Cozzella
Texto
Biografia
Levy Damiano Cozzella (São Paulo SP 1929 - idem 2018). Compositor, arranjador, professor. Na década de 1950, estuda composição com Hans-Joachim Koellreutter, que o leva à técnica dodecafônica. Também trava contato com os poetas concretistas Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari - com quem realiza, em 1954, a oralização1 de poemas da série Poetamenos, de Augusto. Sua Homenagem a Weber é apresentada na 6ª Bienal de Música Contemporânea, em 1961, ano em que viaja para a Alemanha a fim de frequentar o curso de verão de Darmstadt e o Festival de Música Nova de Donaueschingen. Em 1963, ao lado dos compositores Willy Corrêa de Oliveira, Gilberto Mendes, Julio Medaglia, Rogério Duprat e Sandino Hohagen, assina o manifesto conhecido como Música Nova,2 que também designa o grupo signatário, identificado com a vanguarda da música brasileira, em oposição aos adeptos do nacionalismo. No mesmo ano, utilizando programação computacional, compõe com Rogério Duprat a Klavbim II para piano solo, provavelmente a primeira peça do gênero feita no Brasil. Cozzella integra o corpo docente do curso de música da Universidade de Brasília (UnB), em 1964, mas se demite no ano seguinte devido às pressões políticas decorrentes do golpe militar. Desempregado e sem perspectivas profissionais no universo erudito, funda com Duprat e Pignatari, em 1966, a produtora Audimus, a fim de compor jingles e trilhas sonoras. Em 1967, passa a escrever arranjos vocais de música popular para o Coralusp,3 recém-fundado pelo maestro Benito Juarez. Por meio de Julio Medaglia, aproxima-se dos tropicalistas, compondo arranjos para o LP Caetano Veloso, de 1968, bem como para a canção São, São Paulo Meu Amor, de Tom Zé, vencedora do 4º Festival da TV Record, em 1968. Produz e faz os arranjos do primeiro disco da fase psicodélica de Ronnie Von, de 1969, que traz canções como Anarquia, que é iniciada com um trecho de um telefonema de Cozzella para perguntar a Ronnie o que acha da moda, e Sílvia: 20 Horas, Domingo, além de Espelhos Quebrados, que contém ruídos de vidros se partindo. Também atua como júri nos festivais de música popular brasileira. Na década de 1970, participa da fundação do Departamento de Música da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em que leciona até sua aposentaria, nos anos 1990. Trabalha ainda como compositor e diretor musical do Teatro Arena em São Paulo, nas décadas de 1950 e 1960, e compõe trilhas de filmes como As Cariocas, 1966, de Walter Hugo Khouri, e Trilogia do Terror, 1968, de José Mojica Marins, Luís Sérgio Person e Ozualdo Candeias, Panca de Valente, 1968, de Luís Sérgio Person, e O Rei da Vela, 1983, de José Celso Martinez Corrêa e Noilton Nunes.
Comentário Crítico
Com uma obra pouco extensa, Damiano Cozzella não figura entre os grandes nomes da música erudita brasileira e no campo da música popular é ofuscado pela popularidade dos colegas arranjadores Rogério Duprat e Julio Medaglia. Celebrado apenas entre cultivadores do repertório coral, o músico está presente, contudo, em alguns dos principais acontecimentos musicais brasileiros da segunda metade do século XX.
Suas primeiras composições têm orientação dodecafônica, ainda marcadas pela influência de Hans-Joachim Koellreutter. É o caso das Músicas I-IV, compostas entre 1954 e 1962. Após o período em Darmstadt e Donaueschingen, incursiona pela música eletroacústica - em peças como Música Experimental (1963) e Ludus Mardalis 1-2 (1967), compostas com Rogério Duprat - e, principalmente, pela música aleatória, com influência de John Cage. Em Discontínuo, 1963, para cordas e piano, alterna a escrita tradicional à notação gráfica, empregando retângulos de diferentes tamanhos e deixando os intérpretes livres para escolher, entre três registros predeterminados, a altura a serem executadas, bem como para alterar a ordem dos eventos e prolongar ou encurtar cada um deles com base numa sequência de durações relativas. A influência de Cage transparece ainda nos happenings que ele realiza ao lado de Duprat, Décio Pignatari e os irmãos Campos. Entre eles, destaca-se o Movimento de Arregimentação Radical de Defesa da Arte (M.A.R.D.A.), performance debochada realizada em uma tarde de 1966 pela cidade de São Paulo, quando placas com frases satíricas são penduradas nos principais monumentos da cidade.
Ao levar ao extremo a proposta neodadaísta de Cage, Cozzella acaba se afastando do grupo Música Nova. A vanguarda musical brasileira vê-se então cindida: de um lado, a vertente estruturalista, representada por Willy Corrêa de Oliveira e Gilberto Mendes, mais ligados a Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen; de outro, a vertente cagiana, representada por Duprat e Cozzella, que com sua atitude debochada decretam o "fim do artístico", tomam a música como atividade puramente profissional e passam a trabalhar para a indústria cultural. Seu desejo é levar ao grande público as mudanças estéticas até então restritas ao pequeno público de elite, utilizando como matéria-prima a música de consumo. O arranjo era o principal instrumento para realizar essa tarefa. Com efeito, em seus trabalhos fonográficos, Cozzella parodia antigos gêneros musicais, emprega clusters4 e vários tipos de ruído, cita trechos de hits conhecidos e abusa da ironia, unindo sons palatáveis à inovação e à crítica típica das vanguardas.
Outro campo em que se destaca é o arranjo vocal. Desde o início da década de 1960, ao lado de Gilberto Mendes, ele vem revolucionando o repertório coral brasileiro, propondo novas sonoridades e empregando recursos cênicos (em composições como Ruidismo dos Pobres), além de incorporar elementos da canção de consumo, por meio de colagens e citações. Tais inovações são aproveitadas em seus arranjos para o Coralusp, que logo se torna um laboratório de experimentações e modelo seguido por diversos coros universitários do Brasil. Tais arranjos caracterizam-se pelo uso de harmonias bossa-novistas, presença de texturas contrapontísticas e adequação às características das vozes brasileiras.
Uma de suas últimas aparições públicas como compositor se dá em 1982, com a peça Sem Título, com falas, estreada - sob vaias - pela Orquestra Sinfônica de Campinas no 13º Festival de Inverno de Campos do Jordão. Baseada na técnica serial, a peça é escrita para três grupos sinfônicos e entremeada por cerca de 60 falas, entre elas: "É para ouvir isso com o ouvido esquerdo ou direito, maestro?", "Atenção cultores da cultura superior: todos ao Circo Orlando Orfei", "É para levar a sério isso que estamos fazendo, maestro?". A maestrina Adriana Giarola, que rege uma das três orquestras, sai do palco sambando ao som de música carnavalesca. Em entrevista ao crítico João Marcos Coelho, por ocasião da estreia, Cozzella afirma não querer ser um compositor reconhecido, mas apenas criticar a elite, que considera "muito pequena" e merecedora, por isso, de uma sacudida que a acorde.
Notas
1 Os poetas concretos e músicos a eles associados chamam de "oralização" a leitura musical de textos poéticos, explorando-lhes as sonoridades e a espacialização.
2 O documento, intitulado Por uma nova música brasileira, é publicado no terceiro número de Invenção: Revista de Arte de Vanguarda. Propunha a ruptura com o passado e a busca da inovação por meio de "um compromisso total com o mundo contemporâneo".
3 Coro de estudantes da Universidade de São Paulo (USP), fundado pelo Grêmio da Escola Politécnica, em 1967.
4 Bloco sonoro formado por alturas muito próximas umas das outras, produzido, por exemplo, espalmando-se a mão aberta sobre o teclado do piano.
Espetáculos 14
Links relacionados 1
Fontes de pesquisa 12
- CAMARGO, Cristina M. E. da Costa Julião de. Criação e arranjo: modelos de repertório para o canto coral no Brasil. Dissertação de Mestrado. São Paulo: ECA-USP, 2010.
- COELHO, J. M. "A música de Cozzella sacudindo a platéia" (matéria publicada na Folha de S. Paulo de 17 de julho de 1982). In: No calor da hora: música e cultura nos anos de chumbo. São Paulo: Argol, 2008, p. 109-114.
- FRASER, Etty. Etty Fraser. São Paulo: [s.n.], s.d. Entrevista concedida a Rosy Farias, pesquisadora da Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. Não Catalogado
- GAÚNA, Regiane. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: Editora Unesp, 2001. Disponível em: < http://www.felu.xpg.com.br/Sonoridades_multiplas_Regiane_Gauna.pdf >. Acesso em 20 out. 2012.
- GROVE Musica Online. Verbete Damiano Cozzella. Disponível em: <www.oxfordmusiconline.com>. Acesso em 08 fev. 2011.
- MARIZ, Vasco. Grupo Música Nova. In: ______. Figuras da música brasileira contemporânea. Brasília: UnB, 1970, p. 117-118.
- NEVES, José Maria. O Grupo Música Nova. In: ______. Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1981. p. 161-167.
- O REI da Vela. São Paulo: Teatro Oficina Uzyna Uzona, [1967]. 1 programa do espetáculo realizado no Teatro Oficina.
- O REI da Vela. São Paulo: Teatro Oficina Uzyna Uzona, [2017]. 1 programa do espetáculo realizado no SESC Pinheiros.
- ORREGO-SALAS, Juan. "Traditions, Experiment, and Change in Contemporary Latin America". Latin American Music Review. Texas, Vol. 6, No. 2 (Autumn - Winter, 1985), p. 152-165.
- Programa do Espetáculo - O Noviço - 1963. Não catalogado
- Programa do Espetáculo -A Mandrágora - 1968. Não catalogado
Como citar
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DAMIANO Cozzella.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/pessoa399022/damiano-cozzella. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7