Central do Brasil

Central do Brasil, 1998
Walter Salles
Texto
Análise
Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles (1956), é um dos filmes fundamentais da chamada retomada do cinema brasileiro, com repercussão internacional e premiado em diferentes festivais. As questões sociais da violência, da migração, do analfabetismo, da religião e da pobreza são representadas no percurso das personagens.
Dora [Fernanda Montenegro (1929)], professora aposentada, ganha a vida trabalhando na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro, redigindo cartas para quem não sabe escrever. Ela não envia as cartas para os destinatários, rasga algumas e guarda outras em uma gaveta de seu apartamento. A vida de Dora se transforma quando ela conhece o garoto Josué [Vinícius de Oliveira (1985)]. Ana, mãe de Josué, procura Dora para que ela escreva e envie ao pai de seu filho uma carta, dizendo que o menino gostaria de conhecê-lo. A carta tem o mesmo destino das outras, como se mostrará no decorrer do filme. Dias depois, Josué procura Dora, dizendo que precisa enviar uma nova carta para o pai. Ana havia morrido em um acidente, tal como mostram as cenas anteriores. As vidas de Dora e Josué, então, entrecruzam-se. Ela leva o garoto para casa, e no dia seguinte vende-o para uma traficante de crianças. Minutos depois, Dora arrepende-se e volta para buscar Josué, fugindo com a criança e o dinheiro. Os dois iniciam uma viagem em busca do pai do garoto. Durante a viagem, as relações entre as personagens tornam-se mais íntimas e afetivas. Nesse movimento, Dora vai aos poucos deixando a amargura e desenvolvendo ternura e suavidade.
O marco dessa mudança ocorre após uma briga com Josué. O menino sai correndo, em meio à multidão reunida para procissão de Nossa Senhora das Candeias, no interior de Pernambuco. Dora procura o garoto, entrando numa Igreja de Nossa Senhora dos Milagres. A câmera acompanha lentamente o caminhar de Dora, em meio às diversas pessoas que rezam em frente às imagens religiosas. A câmera começa a girar 360 graus, e as imagens alternam-se entre o interior e o exterior da Igreja, onde estouram fogos de artifício. Entre os cânticos e as imagens, ela entra num transe místico e acaba desfalecida. Acorda no dia seguinte no colo de Josué. De acordo com Paulo Henrique Alcântara, essa imagem de uma espécie Pietá invertida determina uma mudança emocional na personagem1. Ela “ressuscita” consolidando sua nova afetividade e identificação com o problema do garoto.
Giovanni Ottone, considera Central do Brasil uma superação do ressentimento acompanhada da redenção:
Uma obra magistral, densa de referências ao cinema brasileiro antecedente que já tratou o tema da migração, iluminada pela presença de uma grande atriz, Fernanda Montenegro, e que lembra o grande cinema neo-realista italiano. O sertão aqui é a meta de uma volta emotiva (em oposição à cidade), é a projeção romântica de uma dignidade perdida e torna-se a terra da pacificação e da reconciliação social (Josué, a geração jovem, reencontra as suas raízes e Dora, a geração velha, reencontra a ética e a humanidade)2.
Central do Brasil constrói-se como road movie pelo sertão brasileiro e lembra, como sugere Ismail Xavier (1947), Alice nas Cidades (1974), do diretor alemão Wim Wenders (1945), ao trazer o encontro do adulto com uma criança abandonada3. Segundo Marcos Strecker, a viagem pelo sertão do país traz a demarcação da geografia pessoal das personagens. Para o autor, trata-se de um abandono do espaço urbano para o campo. Uma trajetória na qual o Brasil industrializado, marcado pela violência e a falta de afeto é deixado para trás, na busca por um passado mítico do interior do Nordeste4.
Em perspectiva diversa, Ivana Bentes (1964) considera que:
Central é o filme do sertão romântico, da volta idealizada à “origem”, ao realismo estetizado, e a elementos e cenários do Cinema Novo, e que sustenta uma aposta utópica sem reservas, daí o tom de fábula encantatória do filme. O sertão surge aí como projeção de uma “dignidade” perdida e como a terra prometida de um inusitado êxodo, do litoral ao interior, uma espécie de “volta” dos fracassados e deserdados que não conseguiram sobreviver nas grandes cidades. Não uma volta desejada ou politizada, mas uma volta afetiva, levada pelas circunstâncias. O sertão torna-se território de conciliação e apaziguamento social, para onde o menino retorna – à cidadezinha urbanizada com suas casas populares – para se integrar a uma família de carpinteiros5.
Central do Brasil, leva cerca de 5.063.500 pessoas às salas de cinemas pelo mundo todo, sendo 1.600.000, apenas no Brasil. Exibido em países como Bolívia, Argentina, França, Alemanha, Coreia do Sul e Estados Unidos, o filme ganha diversos prêmios, entre os quais estão: Globo de Ouro para Melhor Filme em Língua Estrangeira; Urso de Ouro de Melhor Filme, Urso de Prata de Melhor Atriz para Fernanda Montenegro e Melhor Filme pelo Júri Ecumênico no Festival de Berlim. Também é indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz.
Notas
1 ALCÂNTARA, Paulo Henrique. Narrativa da perda e do reencontro: uma leitura do roteiro de Central do Brasil. Alceu, Rio de Janeiro, v. 15, n.30, p. 227-239, jan./ jun. 2015. p. 233. Disponível em: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu%2030%20pp%20227%20a%20239.pdf >. Acesso em : 27 fev. 2017.
2 OTTONE, Giovanni. O renascimento do cinema brasileiro nos anos 1990. Alceu, Rio de Janeiro, v. 8, n.15, p. 271-296, jul./ dez. 2007. Disponível em: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Ottone.pdf >. Acesso em: 27 fev 2017.
3 FOLHA de S.Paulo. Wenders marcou geração dos 90, aponta Xavier. Folha de S.Paulo, São Paulo, 3 fev. 2007. Ilustrada. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0302200708.htm >. Acesso em: 17 jul. 2016.
4 STRECKER, Marcos. Na Estrada: o cinema de Walter Salles. São Paulo: Publifolha, 2010.
5 BENTES, Ivana. Sertões e Favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Alceu, Rio de Janeiro, v. 8, n.15, p. 242-255, jul./ dez. 2007. Disponível em: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n15_bentes.pdf >. Acesso em: 19 jul. 2016.
Fontes de pesquisa 7
- ALCÂNTARA, Paulo Henrique. Narrativa da perda e do reencontro: uma leitura do roteiro de Central do Brasil. Alceu, Rio de Janeiro, v. 15, n.30, p. 227-239, jan./ jun. 2015. p. 233. Disponível em: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu%2030%20pp%20227%20a%20239.pdf >. Acesso em : 27 fev. 2017.
- BENTES, Ivana. Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome. Alceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política. Rio de Janeiro, v.8, n.15, jul./dez. 2007. Disponível: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/alceu_n15_bentes.pdf >.
- FOLHA de S.Paulo. Wenders marcou geração dos 90, aponta Xavier. Folha de S.Paulo, São Paulo, 3 fev. 2007. Ilustrada. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0302200708.htm >. Acesso em: 17 jul. 2016.
- GATTI, André Piero. A comercialização de um filme internacional: Central do Brasil. Imagofagia – Asociación Argentina de Estudios de Cine y Audiovisual (ASAECA) www.asaeca.org/imagofagia n. 3, 2011. Disponível: . Acesso: 18 de julho de 2016.
- NAGIB, Lúcia. Introdução” In: NAGIB, Lúcia. O Cinema da retomada: depoimentos de 90 cineastas dos anos 90. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. p. 13-17.
- OTTONE, Giovanni. O renascimento do cinema brasileiro nos anos 1990. Alceu, Rio de Janeiro, v. 8, n.15, p. 271-296, jul./ dez. 2007. Disponível em: < http://revistaalceu.com.puc-rio.br/media/Alceu_n15_Ottone.pdf >. Acesso em: 27 fev 2017.
- STRECKER, Marcos. Na Estrada: o cinema de Walter Salles. São Paulo, Publifolha, 2010.
Como citar
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CENTRAL do Brasil.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
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Verbete da Enciclopédia.
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