A morte de D.J. em Paris
Texto
Análise
Publicada em 1975, a reunião de contos A Morte de D.J. em Paris, de Roberto Drummond (1933-2002), é um marco literário da década de 1970. Vencedor do prêmio Jabuti daquele ano, Drummond consegue captar, em torno do que chama de literatura pop, os interesses e a perspectiva de uma jovem geração de leitores. Essa geração é formada em torno da liberalidade de costumes e da cultura de massa num país calado pela ditadura militar.
Em entrevista ao editor e jornalista João Adolfo de Granville Ponce (1933-2015), Drummond oferece as balizas ideológicas de seu trabalho: a referência a ícones da cultura de massa e a aproximação da literatura com a música popular; a necessidade de recuperar vozes e modos reprimidos pelo autoritarismo, o mergulho no subterrâneo e revolucionário; e a valorização da forma pautada pelo universo e pela língua popular, prenhes de conteúdo social. Embora não submetido a um programa literário, os dez contos de A Morte de D.J. em Paris exploram a postura descrita. Duas características apresentam-se como centrais na construção das narrativas. De um lado, o que o crítico Flávio Aguiar (1947) chama de “tom de confidência ou cochicho” que perpassa os registros de língua e a estruturação do que se conta; e, de outro, a tensão entre repressão e desejo de liberdade, inerente às personagens. Em “Dôia na janela”, identificam-se os elementos: trata-se do caso de uma interna de hospício que passa seus dias à janela, saudosa de momentos em família e sociedade, porém, com medo de deixar a instituição para viver no mundo real. Na narrativa seguinte, “Isabel numa 5ª feira”, o narrador, em diálogo com outro homem, fala de sua paixão submissa por uma mulher contra a qual tenta prevenir seu interlocutor e cuja identidade se pulveriza em índices políticos e culturais contraditórios.
O amor apresenta-se no cerne de relações entre liberdade e repressão em alguns contos. É o caso de “O Doce Blue das Hienas”, em que a obsessão do narrador pela namorada pontua uma existência medíocre e sufocante. “Um homem de Cabelos Cinzas”, por sua vez, encena uma perseguição policial em torno dos mistérios de um homem apaixonado. Em “A Outra Margem”, a realização do amor pede uma solução radical – o assassinato do próprio apaixonado por estranhos capangas.
Cenas cotidianas surgem como válvulas de escape dessa tensão, sobretudo em “A Sete Palmos do Paraíso”, em que “Batman”, filho de um casal de classe média ciosa de seus símbolos de distinção, realiza seu desejo de voar saltando da janela do apartamento. Em “Um Pouco pra Lá do Aconcágua”, o protagonista assassina gatos em série em reação surda à morte do irmão, e em “Rosa, Rosa, Rosae”, tudo se passa em torno da obsessão de um professor de latim (cujo saber se parodia na própria forma linguística, como índice do alheiamento reprimido do protagonista) por uma aluna.
A investigação e o controle, o castigo e a absolvição fazem-se sentir em dois contos. Em “Objetos Pertencentes a Fernando B., Desaparecido Misteriosamente”, o ambiente repressor é fundo do sumiço do protagonista, cuja história se conta, em modo de investigação policial, a partir de um inventário de objetos e testemunhas a eles ligadas. O inquérito, porém, surge com maior complexidade no conto que dá título à coleção. Dividido em sete “atos” – e incorporando a linguagem dramática –, “A Morte de D.J. em Paris” trata do desaparecimento de D. J., um professor de francês que recria Paris no sótão de sua casa, com base nos depoimentos de amigos e colegas.
Entre a Paris dos sonhos e a Belo Horizonte da realidade, D. J. – cujo maior sonho é o de encontrar uma feérica “mulher azul” que fala “como um frevo tocando” – será julgado num tribunal post mortem. Neste, sua vida se desenrola mediante a costura de retalhos diversos: as palavras de um amigo de bar; o trecho de diário pessoal encontrado por um repórter investigativo; o relato de um homem rouco, lido em voz alta por um locutor de rádio; fragmentos de correspondência do réu; os testemunhos de um residente da Paris de D. J. (que se supunha imaginária) e da improvável irmã de D. J., cindida em duas figuras distintas; e trecho da entrevista concedida pela própria “mulher azul” à France Press.
A cada movimento do processo, a narrativa mimetiza a variedade de meios – o diário, a correspondência, o depoimento, a entrevista publicada – que irradiam a ação contra o réu desaparecido. O resultado é duplo: recupera-se democraticamente (parafraseando Drummond) a pluralidade que a ideologia repressora apaga, ao mesmo tempo em que essa pluralidade se denuncia como agência do poder repressor. A mistura de gêneros ainda reforça, como observa a pesquisadora Sílvia de Cássia Damascena de Oliveira, a criação do absurdo – “a realidade delirante da/na ficção que mostra ou aponta o absurdo da realidade vivida nos diversos aspectos do cotidiano: político, social, econômico, familiar”1–, presente em toda a coletânea pela caracterização de protagonistas e situações.
A novidade formal da literatura de Drummond condensa-se na ambiguidade inerente ao termo “pop”, rubrica para a subversão jovem, tensões e conflitos da cultura popular urbana. Também para a identificação de novas modalidades de controle e imposição do poder. Por uma relação renovada da sociedade com os meios de comunicação de massa, dão ensejo à constituição de um indivíduo fragmentário, cuja experiência se pulveriza com os próprios modelos reificados de mobilização do desejo. Daí a pertinência da observação de Flávio Aguiar acerca do “coro de mutilados” que povoa os contos do autor. São personagens cujos nomes se reduzem a iniciais anônimas como seus próprios dramas ou a obsessões, que são índices da impossibilidade de construir coletivamente o sentido de viver.
Nota
1 OLIVEIRA, Silvia de Cassia Rodrigues Damacena de. A Literatura pop de Roberto Drummond: arte pop, referencialidade e ficção. 2 v. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, 2008. p. 104.
Fontes de pesquisa 2
- DRUMMOND, Roberto. A morte de D. J. em Paris. 3. ed. São Paulo: Editora Ática, 1980. (Edição com entrevista do autor para João Adolfo de Granville Ponce e prefácio de Flávio Aguiar).
- OLIVEIRA, Silvia de Cassia Rodrigues Damacena de. A Literatura pop de Roberto Drummond: arte pop, referencialidade e ficção. 2 v. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Estadual Paulista, Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas, São José do Rio Preto, 2008.
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A morte de D.J. em Paris.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra69121/a-morte-de-d-j-em-paris. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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