Presença de Anita
Texto
Primeiro longa-metragem da Cinematográfica Maristela, uma das empresas produtoras que, no início da década de 1950, acompanha o impulso da industrialização do cinema paulista, cujo símbolo mais ambicioso é a Companhia Cinematográfica Vera Cruz. De pretensões mais modestas, a Maristela de igual modo propõe um cinema de “qualidade”, que se contrapõe às chanchadas cariocas, mas dentro de um esquema de produção classe B, assim definida na época pelo crítico Almeida Salles (1916-1977): orçamento barato, rapidez nas filmagens e contratação de técnicos com salários mais baixos. Tudo visando a imediata recuperação dos investimentos iniciais1.
Presença de Anita é concebido dentro desses parâmetros. Contrata-se Ruggero Jacobbi (1920-1981), renomado diretor italiano de teatro, para dirigi-lo; entre as filmagens, em outubro de 1950, e o lançamento, em maio de 1951, decorrem pouco mais de seis meses; o roteiro baseia-se no romance de Mário Donato (1915-1992), o “livro mais lido no Brasil”2, suposta garantia de sucesso. Como estratégia de exibição, o cartaz publicitário promete uma equivalência aos filmes noir norte-americanos, destacando o tipo da mulher fatal, densa e enigmática, como também o faz o anúncio de lançamento: “Desde o primeiro dia que Anita o enleou em seus braços sensuais, ele sabia que caminhava para a morte”.
O entrecho é conduzido pelo protagonista masculino, o engenheiro Eduardo [Orlando Vilar (1925-2005)] -, casado com Lúcia, de tradicional família paulistana. Adúltero compulsivo, ele se envolve com Anita [Antonieta Morineau (1932)], uma moça aparentemente moderna e liberada, porém depressiva e atormentada pela ideia da morte. O filme se abre com a escadaria de um prédio, ouve-se o som de dois tiros e depois se revela que Anita está morta e Eduardo gravemente ferido. Um longo flashback, fruto dos delírios de Eduardo durante o seu restabelecimento no hospital, descreve a tortuosa relação dos amantes até a crise que culmina com o pacto de morte, por ele proposto, ao não saber escolher entre a paixão de Anita e o conforto do casamento.
Na aparência um sujeito prático e frio, Eduardo na verdade é pouco resistente às pressões e vive à procura de uma mulher ideal ou submisso às comodidades da vida burguesa que lhe concede a esposa, esta bastante criteriosa na manutenção das aparências familiares. O que a leva, para defender o marido acusado do assassinato da amante, à contratação de um advogado que propõe as encenações necessárias para forjar a hipótese de duplo suicídio. A argumentação sensibiliza o tribunal e, por 6 votos a 1, Eduardo é declarado inocente.
Enquanto descansa na casa de campo, recebe a visita de Diana [Vera Nunes (1928)], outra moça moderna, de hábitos liberais, mas que logo se mostra inescrupulosa, cheia de caprichos, de um romantismo dúbio, perverso, sem limite moral nas tentativas de seduzir o marido de sua irmã de criação. Eduardo hesita em assumir novo envolvimento, quer reafirmar-se como bom pai de família e deprime-se com a culpa diante da morte de Anita. Para atenuar o remorso, procura primeiro a mãe desta, que possui uma última carta da filha, na qual Anita confessa seus impulsos suicidas. Em seguida, entra em contato com o único jurado que não o absolvera do suposto homicídio (Elísio de Albuquerque, 1920-1983), mas a tolerância desse homem é suficiente para tranquilizá-lo: a consciência de Eduardo, lhe diz o jurado, é que deve puni-lo, já que permanecem dúvidas sobre o terrível incidente.
Quando Diana insiste em se tornar sua amante e ele consente, Eduardo recai na antiga crise, oscilando novamente entre a vida familiar segura e a canalhice sentimental que descobre intrínseca à sua personalidade. A voz de Anita o atormenta com recordações e o acusa de traição. Isso o leva a retornar ao apartamento da ex-amante, onde se assusta com a aparição dela a lhe exigir que o pacto de morte seja agora devidamente cumprido. Atônito, despenca no vão da mesma escadaria que abre o filme.
A temática adulta, de meandros psicológicos, que procura expor o convencionalismo das instituições burguesas diante de novas e problemáticas aspirações de desejo e de liberdade sexual, não cativa o público nem a crítica. Anatol Rosenfeld (1912-1973) reconhece que “a história é narrada com sobriedade, fluência e certo rigor”, mas aponta que “o filme não acompanha a audácia do romance e tampouco o seu fundo psicológico”3. Um comentário de autor não identificado, em posição oposta, quase solicita a interdição do filme: “Um drama pesado, ofensivo à dignidade da família e sem um fator positivo sequer, capaz de atenuar tudo o que de mórbido, obsceno e sensual”4.
A maior parte dos cronistas5 admite os resultados pífios, mas sustenta o caminho promissor que trilha a Cinematográfica Maristela para a consolidação de uma indústria cinematográfica organizada. Para eles, o filme é um ensaio convincente para as futuras possibilidades da empresa, pois nota-se a seriedade e a ausência de efeitos fáceis. Almeida Salles concorda com a proposição, mas prefere investir no aprofundamento do debate. Menciona problemas de composição do elenco e inexperiência do diretor, entre outras, o que condena o filme a uma produção de nível inferior à da Vera Cruz, e critica a transposição do romance que deixa “um conflito vago, vulgar, (…) com irresistíveis acentos de dramalhão”6.
Posteriormente, a opinião de Rafael de Luna Freire destaca as “alucinações representadas por sobreposições, sombras ameaçadoras, planos vertiginosos de escadas”7, que conseguem absorver os elementos típicos do cinema noir americano. Considera que o filme introduz no cinema brasileiro a temática da psicanálise, desde alguns anos presente em produções internacionais similares. O que fornece à cinematografia nacional de então, cabe acrescentar, um ar “universal” que não deixa de impregnar outras obras da mesma década, prestigiadas pela corrente não nacionalista da crítica brasileira.
Notas
1 SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade: Marilyn, Buñuel, etc., por um escritor de cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 248.
2 FALAM de Anita, O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1951.
3 ROSENFELD, Anatol. Na Cinelândia paulistana. São Paulo: Perspectiva, 2002. p.111.
4 PRESENÇA de Anita. Diário de Notícias, Ribeirão Preto, 13 mai. 1951.
5 Entre outros: Adolfo Cruz. A Notícia, Rio de Janeiro, 29 mai. 1951 e Alceu Pereira. O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 3 fev. 1951.
6 SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade: Marilyn, Buñuel, etc., por um escritor de cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 249.
7 FREIRE, Rafael de Luna. Quem ou o que foi a Maristela. In: Centro Cultural Banco do Brasil. Retrospectiva cinematográfica Maristela. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, 2011. p. 26.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 6
- CATANI, Afrânio Mendes. A Sombra da outra: a Cinematográfica Maristela e o cinema industrial paulista nos anos 50. São Paulo: Panorama do Saber, 2002. p. 72-78, p. 109-115.
- FALAM de Anita. O Jornal, Rio de Janeiro, 27 mai. 1951.
- FREIRE, Rafael de Luna. Quem ou o que foi a Maristela. In: Centro Cultural Banco do Brasil. Retrospectiva cinematográfica Maristela. Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, 2011. p. 3-8.
- PRESENÇA de Anita. Diário de Notícias, Ribeirão Preto, 13 mai. 1951.
- ROSENFELD, Anatol. Na Cinelândia paulistana. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 110-111.
- SALLES, Francisco Luiz de Almeida. Cinema e verdade: Marilyn, Buñuel, etc., por um escritor de cinema. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. (1a. parte do artigo publicado em O Estado de S. Paulo, 12 mai. 1951). p. 247-249
Como citar
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PRESENÇA de Anita.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67363/presenca-de-anita. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7