Amarelo Manga
Texto
Amarelo Manga é o primeiro longa-metragem do diretor pernambucano Cláudio Assis (1955) e inscreve-se na tendência chamada "árido movie", que, segundo o próprio Assis, inclui filmes feitos em "locações nordestinas, com histórias universais e música de vanguarda"1. Pode ser considerado uma continuação estética e formal de um curta-metragem do mesmo diretor, Texas Hotel (1999), nome de um prédio velho do centro histórico do Recife utilizado como principal cenário do filme.
Pelo Texas Hotel e pelo bar Avenida, os cenários do filme, passam os personagens que compõem a narrativa "coral" de Amarelo Manga. Diz-se de "filmes corais" aqueles em que o foco narrativo não está concentrado em um ou dois personagens principais, mas em vários, sem que nenhum se sobreponha aos demais. O filme é feito, na maior parte, inteiramente com monólogos dos principais intérpretes e em algumas cenas há diálogos em que os personagens interagem minimamente entre si. No Texas Hotel, o faxineiro Dunga [Matheus Nachtergaele, (1968) é quem dá as cartas. Homossexual vaidoso e rancoroso, ele é fascinado pelo açougueiro Welington Kanibal [Chico Diaz (1959)]. Com ciúme da relação de Kanibal com sua mulher, a devotada evangélica Kika [Dira Paes (1969)], Dunga prepara para ele uma peça: envia uma carta anônima a Kika revelando o local onde Kanibal se encontra com sua amante Daisy (Magdale Alves). Kika vai ao local, flagra a traição e ataca sua rival, arrancando-lhe um pedaço da orelha. Transtornada, ela sai pelas ruas da cidade e é amparada por Isaac (Jonas Bloch), outro morador do Texas Hotel. Isaac é um necrófilo que se diverte brincando de tiro ao alvo com cadáveres, recolhidos por Rabecão (Everaldo Pontes), um agente policial corrupto. É com Isaac que Kika revela a perversão sexual contida durante anos por imposição do moral religioso. Paralelamente, o dono do Texas Hotel, seu Bianor, morre, mas ninguém comparece ao velório. Servindo como uma espécie de narradora dessas pequenas histórias, Lígia, a dona do bar Avenida, recebe em seu estabelecimento bêbados, vagabundos e tarados e ainda tem tempo para filosofar enquanto excita, perversamente, os frequentadores do local.
Amarelo Manga é um dos destaques do cinema brasileiro dos anos 2000. O filme mescla elementos regionais (o mangue beat, cidadãos locais, locações do Recife) com recursos de narração típicos do cinema moderno (perversão da forma clássica do split screen, apelos diretos ao espectador por parte dos personagens, câmera em plongée extrema. A mescla de abordagens ficcional e documental também está presente. Os bairros do Recife por onde transitam os intérpretes não são meros panos de fundo da ação, mas influenciam diretamente na construção dos personagens. Outro recurso usado para infligir uma carga não ficcional ao filme são os planos curtos montados em sequências rápidas que cortam o fluxo e a evolução narrativos. Outra característica e força estilística de Amarelo Manga é a interpretação dos atores profissionais. Mais do que diálogos, os personagens estabelecem monólogos dirigidos ao espectador. A construção dos personagens se dá de maneira gradual e homogênea, todos evoluindo, independentemente, para o clímax da ação em torno da traição de Kanibal. Num dos momentos de maior liberdade narrativa, Assis se põe em cena, de corpo presente, para falar com a personagem Kika, enunciando a frase que resume o caminho trilhado pela jovem evangélica: "O pudor é a forma mais inteligente de perversão". Sua intervenção desencadeia o comportamento da personagem que se justifica no clímax do filme, cuja cena final mostra Kika, no cabeleireiro, respondendo à pergunta sobre a cor desejada para o cabelo: "Amarelo manga".
A sequência em que Dunga vai executar o plano de separar Kika e Kanibal é exemplar do estilo do filme. O faxineiro do Texas Hotel procura um garoto para levar a Kika o bilhete no qual revela, anonimamente, que seu marido a trai. O menino coloca o bilhete debaixo da porta de Kika, que o lê imediatamente. Nesse momento, um efeito plástico interfere no plano, dividindo a imagem em dois lados: de um, Dunga lendo/escrevendo o bilhete; do outro, Kika também o lê. Essa passagem conjuga um plano sequência de Isaac voltando para o hotel e planos curtos de pessoas pelas ruas do Recife. Retornam aqui os efeitos imagéticos que perpassam o filme e o afastam das formas narrativas clássicas. O mesmo acontece na plongée extrema que mostra seu Bianor cochilando na entrada do Texas Hotel. Outras plongées até mais incisivas são constantes em Amarelo Manga - como a que inicia o filme em que se vê, num movimento de câmera, Lígia deixando o quarto onde dorme para ir ao bar em que trabalha. Esse procedimento evidencia o poder do ato da narração visual, cujas marcas tornam a mise-en-scène de Assis bastante singular.
Outro procedimento presente são os planos que dão a ver não atores, habitantes de bairros de classe baixa do Recife, que trazem para o filme imagens do povo sem as estilizações próprias às personagens de ficção. Tais figuras não têm fala, mas imprimem uma carga de verossimilhança que confere mais força à intriga. O segundo plano que entremeia essa sequência mostra Isaac voltando para o hotel depois de uma noite de bebedeira. A câmera o segue bem de perto ao adentrar no prédio, subir as escadas e deitar-se na cama, permitindo melhor visão do interior do Texas Hotel, com suas paredes descascadas e sujas, um universo insalubre. Essa podridão do cenário serve de metáfora ao mundo em que os personagens vivem e reforça suas atitudes viscerais e enlouquecidas.
Em grande parte por causa das opções narrativas que podem ser consideradas polêmicas (palavreado chulo, necrofilia, cenas de sexo), Amarelo Manga divide opiniões na época do lançamento. O jornal O Estado de S.Paulo compõe a página de críticas favoráveis e desfavoráveis feitas respectivamente pelos críticos Luiz Zanin e Luiz Carlos Merten. Alguns críticos chamam atenção para o lado perverso do roteiro que mostra o Brasil sem enfeites e escancara a hipocrisia e as perversões do ser humano. José Geraldo Couto, na Folha de S.Paulo, insiste que Assis busca "a poesia do sórdido"2, e Rodrigo Fonseca, em o Jornal do Brasil ressalta "a estética do grotesco que lembra pérolas do cinema marginal"3. O lado marginal dos personagens de Amarelo Manga também é ressaltado por José Geraldo Couto, para quem o filme flerta com uma vertente da literatura "de Lima Barreto (1881-1922), Aluízio de Azevedo (1857-1913) e Plínio Marcos (1935-1999), que dá vez e voz aos humilhados e ofendidos da sociedade". O "dar vez aos marginais" é um dos aspectos comuns às diversas apreciações sobre o filme, às críticas ressaltando a confluência entre documentário e ficção que domina o filme. Marcelo Coelho, na Folha de S.Paulo, ressalta que "na representação do religioso (evangélicos e católicos), o filme joga com a sombra de Sartre, Nietzsche e Dostoievski4".
Amarelo Manga ganha quatro prêmios no Festival de Cinema de Brasília, de melhor filme, melhor ator (Chico Diaz), melhor montagem e melhor fotografia.
Notas
1 Folha de S.Paulo, 27 jul. 2003. Ilustrada, p. 3.
2 COUTO, José Geraldo. Folha de S.Paulo, 27 jul. 2003. Ilustrada, p. 1.
3 FONSECA, Rodrigo. O Brasil da sensualidade. Jornal do Brasil, 6 out. 2002.
4 COELHO, Marcelo. A Urgência de Amarelo Manga. Folha de S.Paulo, p. 10, 1 out. 2003.
Fontes de pesquisa 4
- AVELLAR, José Carlos, SARNO. Geraldo. Cláudio Assis: um olhar faca que cega. Cinemais, n. 35, p. 100-19, jul.-set. 2003.
- FONSECA, Nara Aragão. Lisbela e o prisioneiro e Amarelo Manga: duas experiências com a identidade local. In: LYRA, Bernadette, MONZANI, Josetteorg). Olhar: Cinema. São Paulo; São Carlos: Pedro Paulo Editores; CECH-UFSCAR, 2006. p. 72-80.
- RUBIM, A. A. C. Cinema e (cultura da) violência nossa de cada dia. Estudos Socine de Cinema, ano V, Mariarosario Fabris et. al. (org), São Paulo: Panorama, 2004.
- RUBIM, Antonio Albino Canelas. Cinema - e cultura - da violência nossa de cada dia. SOCINE Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema. Estudos Socine de cinema ano V. São Paulo : Panorama, 2004. p. 215-222.
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AMARELO Manga.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
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