Exemplo Regenerador
Texto
Exemplo Regenerador, de José Medina (1894-1980), realizado em 1919, é um curta-metragem com duração de sete minutos e um dos poucos filmes paulistas do período silencioso ainda existente. O filme narra a história de um marido que, indiferente à esposa, a deixa sozinha e vai a um clube no dia do primeiro aniversário de casamento. O mordomo, compadecido da tristeza da patroa, expõe-lhe um plano para que ela reconquiste o marido: envia ao próprio um bilhete anônimo denunciando uma suposta traição da mulher, e orienta-a na simulação conjunta de uma cena de adultério. Consegue-se o pretendido: provocar ciúmes no marido negligente, que retorna a casa imediatamente. Quando sobrevém o impulso de matar os supostos amantes, o marido se dá conta da farsa, e o mordomo, agente do equilíbrio a ser restabelecido no lar, desfaz a cena, alertando-o, antes de se retirar: "Isto... nada mais é do que o que pode acontecer se as 'conferências' continuam...". A lição regenera o faltoso marido, que agora, em casa, conversa alegremente com a esposa.
O filme tem início na sala de estar do casal, com o marido se preparando para sair, vaidoso diante do espelho, negando companhia à esposa. O mordomo, sabendo que o marido mente, passa de sua simples função à de "mestre do jogo", guardião dos valores familiares. Pois, quanto ao restabelecimento da ordem dentro das normas socialmente aceitas, se em outro filme de Medina, Fragmentos da Vida (1929), se vê a defesa da ordem pública e suas instituições, aqui a defesa é da esfera íntima da instituição familiar, que mobiliza a imaginação melodramática. A narrativa flui, considerando o formato típico do cinema silencioso, em que a ação dramática se intercala a alguns intertítulos. E um dos primeiros que surgem no filme o classifica de "pequeno drama social". Logo a seguir vem como "casar não é casaca" e "quando se diz o 'sim'...", que conferem a Exemplo Regenerador um ar muito bem-humorado.
A encenação do suposto adultério pelo mordomo dá ao marido a oportunidade de rever sua atitude e modificá-la. Nessa cena, observa-se a atenção de Medina aos elementos da linguagem cinematográfica clássica: a noção de tempo, a decupagem, o uso da câmera em movimento e, especialmente, o uso de primeiros planos. Ao ver o filme, constata-se como gestos, olhares e cenografia se correspondem, definindo uma unidade dramática.
A montagem, nessa perspectiva, dirige o olhar do espectador e o faz acompanhar a ação dramática em sua continuidade, além de criar uma mudança radical de ângulo na sequência de "suspense": ele vê a esposa bebendo e fumando, lânguida, no divã da sala, estrategicamente posicionada de costas para a porta de entrada, em frente ao mordomo, que, debruçado sobre a mesa, não deixa identificar-se à primeira vista ao marido chocado. Medina organiza uma sucessão de planos a partir da experiência do olhar do marido: alterna a imagem dele (em continuidade gestual) com as imagens sequenciais: o cinzeiro com cigarro e charuto, a garrafa de champanhe e o copo sobre a mesa, um homem debruçado e a esposa fumando, até o clímax em que ele puxa o revólver, que precipita a lição de moral.
O filme apresenta um registro documental da cidade de São Paulo, permitindo ao espectador contemporâneo visualizar imagens de quase um século atrás, em cenas externas na Avenida Paulista, em frente ao Parque Trianon1. Essa locação, juntamente com os outros elementos do cenário e do figurino, compõe uma visão do que é o ambiente burguês da época2.
Exemplo Regenerador é o primeiro filme da Rossi Film, recém-criada parceria entre Medina e Gilberto Rossi, que resulta também no Rossi Actualidades, cinejornal quinzenal, a partir de 1921. Quase três décadas após seu lançamento, Exemplo Regenerador é elogiado pelo articulista da revista A Scena Muda (n. 9, 1954), por ocasião da 1ª Retrospectiva do Cinema Brasileiro, em 1954. Para o crítico, o filme conta "[...] uma pequena e interessante historieta, com bons trechos cinematográficos". O crítico Paulo Emílio Salles Gomes atesta a importância histórica do filme para o cinema brasileiro: "Aparentemente, a estrutura dos filmes nacionais por volta de 1919 era baseada ainda numa rígida compartimentação em episódios; desejando mostrar ao seu companheiro de equipe, Gilberto Rossi, a possibilidade de se praticar no Brasil a continuidade cinematográfica, Medina teria realizado Exemplo Regenerador em algumas horas apenas"3.
Além de seu talento artístico como cineasta, o êxito de Medina se deve muito a sua habilidade como produtor, cuidadoso na organização financeira: antes de fazer um filme, tem o hábito de ensaiar os atores como se estivessem sendo filmados, rodando a câmera sem filme dentro, registrando a metragem de filme correspondente às voltas dadas na manivela e, sabendo o preço dos negativos e dos positivos por metro, calcula precisamente o custo do filme (e sempre com 10% a mais, para cobrir imprevistos)4, pesa os lucros, negocia e garantia a exibição, uma exceção entre os produtores de São Paulo. Dos filmes dirigidos por Medina, só restam Fragmentos da Vida, realizado em 1929, e Exemplo Regenerador - por uma grande sorte, já que a Rossi Filme sofre um incêndio por volta de 1926 ou 1927 e o filme só se salva porque o galã do filme, Waldemar Moreno, faz uma cópia por conta própria, a partir da qual se pôde tirar outras.
Notas
1 O local aonde vai o marido é, segundo Rubens Machado Jr., um "clube que ficava situado onde hoje está o Masp". Cf. MACHADO, Rubens. São Paulo em movimento - a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. Dissertação de mestrado. São Paulo: ECA/USP, 1989.
2 O interior (a sala) é, na verdade, o quintal da casa de Gilberto Rossi transformado em cenário, dada a dificuldade de iluminação.
3 GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. p.45.
4 BERNARDET, Lucilla Ribeiro; GOMES, Paulo Emílio Salles. Conversa com José Medina. Op. cit.
Fontes de pesquisa 9
- BERNARDET, Lucilla Ribeiro e GOMES, Paulo Emilio Salles. Conversa com José Medina. Säo Paulo: Cinemateca Brasileira, 1968.07.01.
- CINEMATECA BRASILEIRA. Exemplo Regenerador - descrição plano a plano. São Paulo, s/d.
- GALVÃO, Maria Rita Eliezer. Crônica do Cinema Paulistano. São Paulo: Ed. Ática, 1975.
- GOMES, Paulo Emilio Sales. Cinema: trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
- MACHADO JÚNIOR, Rubens L. R. ; PORTA, P. São Paulo e o seu cinema: para uma história das manifestações cinematográficas paulistanas (1899-1954). In: PORTA, Paula. (Org.). História da Cidade de São Paulo. 1 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2004, v. 2, p. 456-505.
- MACHADO, Rubens. São Paulo em movimento: a representação cinematográfica da metrópole nos anos 20. 1989. Dissertação (Mestrado) - Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), São Paulo, 1989.
- MENDES, Octavio Gabus. O Fernão Dias Paes Leme do cinema brasileiro. Cinearte. Rio de Janeiro, n.204, 22 jan. 1930.
- XAVIER, Ismail. Mimese e temperança. Folha de S. Paulo, Folhetim n. 382 13 maio 1984.
- ______. O período mudo em São Paulo e os Ciclos Regionais. In: RAMOS, Fernão. (Org.). História do cinema brasileiro. São Paulo: Art, 1987.
Como citar
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EXEMPLO Regenerador.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67298/exemplo-regenerador. Acesso em: 04 de maio de 2025.
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