O Profeta da Fome
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O Profeta da Fome é o segundo longa-metragem dirigido por Maurice Capovilla (1936-2021), é realizado com poucos recursos financeiros. Contemporâneo e em diálogo com o cinema marginal, o filme marca um deslocamento do diretor em relação às suas obras anteriores, Capovilla se distancia da preocupação manifesta com o cinema realista.
Num circo pobre trabalham, entre outros, um mágico e sua sobrinha, um faquir e o proprietário do circo, seu Zé. A grande atração é João, que se apresenta como o faquir Ali Khan (José Mojica) em um número no qual come giletes, pregos, cacos de vidro e parafusos. João propõe à sobrinha do mágico que seja sua ajudante nas apresentações e sua companheira na vida. O mágico morre de fome. Desesperado, seu Zé força Ali Khan a fazer o número do "Homem que come gente". No dia do espetáculo, o circo está lotado, todos querendo assistir ao canibal em ação. Entretanto, Ali Khan não consegue comer o menino que lhe é oferecido pela plateia. O público começa um tumulto que culmina em incêndio.
João e sua companheira se juntam a um cego violeiro no caminho. João e sua companheira se põem de novo na estrada. Ao chegarem a uma cidadezinha, João decide fazer o mais novo número de Ali Khan: ser crucificado vivo, pregado pelas mãos. O povo passa a idolatrar Ali Khan, dando-lhe dinheiro e deixando ex-votos a seus pés. O padre, o delegado e o coronel resolvem prender o homem que está lhes tirando o poder. O povo acampa na frente da delegacia onde se encontra o seu guia espiritual. João é solto após passar dias sem comer e decide ser um artista da fome.
O final do filme se passa na cidade de São Paulo e é onde Ali Khan se torna famoso ao conseguir bater o recorde mundial da fome, 100 dias. É homenageado em cerimônia ilustre como "o campeão da fome". Sua figura é veiculada pelos meios de comunicação de massa, com a fome sendo transformada em espetáculo. Por fim, Ali Khan permanece em sua cama de pregos, sem comer, velho e só, num lixão.
O Profeta da Fome apresenta pontos de contato com o cinema marginal e com os documentários anteriores do diretor. Como comenta Ismail Xavier1, o filme aproxima-se das produções da Boca do Lixo em suas metáforas e em seu passeio pela disformidade. O principal elo é a figura de José Mojica, ícone do cinema marginal paulista, que interpreta o faquir Ali Khan. Sua presença sugere um diálogo com o gênero de horror, com o universo dos gibis e o circo-teatro. A obra é uma parábola sobre o subdesenvolvimento brasileiro, figurado na trajetória do faquir. Focalizando o universo da periferia, dialoga com a "estética da fome" de Glauber Rocha, uma vez que não é apenas tema do filme, mas um dado de produção. A escassez de recursos é incorporada na sua forma e se projeta na textura de suas imagens.
A situação do faquir tematiza as dificuldades econômicas e angústias provocadas pelo endurecimento do regime militar. Embora baseada em universo ficcional pautado pelo sarcasmo, a trajetória do personagem abre espaço para imagens documentais, como nos momentos em que a câmara registra o rosto das pessoas que assistem às façanhas do faquir.
O episódio da crucificação de Ali Khan se caracteriza pela diversidade de formas de registro. As imagens do faquir preso ao cruzeiro da cidade, irônicas em relação à crença popular e à figura de um santo impostor, são associadas a imagens que documentam a Festa do Divino, em São Luís do Paraitinga, São Paulo. Depois de uma cartela com a frase "A paixão do incrível sofredor", o faquir faz um sermão para os habitantes da pequena cidade. Um dos planos apresenta-o sendo pregado à cruz pela esposa, com um grande número de pessoas ao fundo. Mas as marteladas, como se supõe, não geram gritos. Estranhos gemidos sugerem um tom de comédia e deboche. Segue-se uma série de closes das fisionomias de romeiros brancos, caboclos e negros, postados como se estivessem olhando para o faquir. A oscilação entre o encenado e o documental é um procedimento criador de um contraste que explicita o universo do filme como realidade construída. No plano temático, expõe-se a face enganosa do sacrifício religioso realizado pelo faquir, que se faz de profeta para arrancar o dinheiro dos pobres.
O filme é bem aceito pela crítica, com exibições no Festival de Berlim e no Festival de Brasília de 1970, em que recebe seis prêmios. No lançamento comercial, alguns críticos chamam atenção para o aspecto fragmentário e a coexistência de estilos. Com base em depoimentos de Capovilla, Alex Viany aponta a utilização de quatro tipos sucessivos de tratamento ao longo do filme: a "comédia circense", o "canto épico" inspirado na música de cordel, o "retrato da realidade brasileira" e, finalmente, o "teatro do absurdo"2. José Carlos Avellar (1936), por sua vez, identifica "uma ligação íntima entre imagens reais e absurdas" e, em relação à situação de pobreza, salienta que "em lugar de uma visão calma e organizada, [...] O Profeta da Fome mostra [...] um retrato desordenado, desigual e incompleto feito por quem vive o problema"3.
Notas
1. XAVIER, Ismail. Do golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In. ______. O cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p.76.
2. VIANY, Alex. O circo da fome e seu faquir subdesenvolvido. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 fev. 1970.
3. AVELLAR, José Carlos. O absurdo nosso de cada dia. Jornal do Brasil, s.d. [pasta P. 472, Centro de Documentação da Cinemateca Brasileira].
Fontes de pesquisa 10
- AVELLAR, José Carlos. O absurdo nosso de cada dia. Jornal do Brasil, s.d. [Pasta P.472, Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira].
- BERNARDINI, Aldo. Incontro con l'autore Maurice Capovilla : La crociata della fame. Bianco e Nero, v. 31, n. 7/8, jul./ago. 1970. p. 112-119.
- CANNITO, Newton. Um cinema de Reflexão. In. CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. Maurice Capovilla: um cinema de reflexão. Organização Dolores Papa. Rio de Janeiro: MD Produções, 2006. p.13-18.
- LIMA, Antônio. Famintos. In. FERREIRA, Jairo. Jairo Ferreira e Convidados especiais: críticas de invenção - os anos SP Shimbun. São Paulo: Imprensa Oficial: Fundação Padre Anchieta, 2006. p.152.
- MAYRINK, Geraldo. As criaturas de Capovilla. Filme Cultura, v. 3, n. 17, nov./dez. 1970. p. 36-41.
- MONTEIRO, José Carlos. O profeta da fome. s.d. [pasta P.472, Centro de Documentação e Pesquisa da Cinemateca Brasileira].
- NAVES, Sylvia Bahiense. Luzes Câmera - Transcrição da entrevista de Maurice Capovilla para o programa da TV Cultura, 1976-1977. São Paulo: Cinemateca Brasileira, 198-.
- ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome. Revista Civilização Brasileira. n. 3, jul. 1965.
- VIANY, Alex. O circo da fome e seu faquir subdesenvolvido. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 fev. 1970.
- XAVIER, Ismail. Do Golpe militar à abertura: a resposta do cinema de autor. In. ______. O cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. p.76.
Como citar
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O Profeta da Fome.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67292/o-profeta-da-fome. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
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