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Enciclopédia Itaú Cultural
Cinema

Memória de Helena

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 24.11.2023
1969
Antes de realizar seu primeiro longa-metragem, Memória de Helena, de 1969, David Eulálio Neves atua em diferentes ramos da cinematografia, seja no campo da teoria e da política cultural, seja nos trabalhos de ordem técnica: crítico de cinema em jornais e revistas cariocas, diretor de vários curtas-metragens, montador, produtor, assistente de dir...

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Antes de realizar seu primeiro longa-metragem, Memória de Helena, de 1969, David Eulálio Neves atua em diferentes ramos da cinematografia, seja no campo da teoria e da política cultural, seja nos trabalhos de ordem técnica: crítico de cinema em jornais e revistas cariocas, diretor de vários curtas-metragens, montador, produtor, assistente de direção e fotógrafo de filmes dos mais importantes realizadores do cinema novo.

Seu primeiro filme de ficção traz a marca das relações de amizade que se firmam nessas diferentes instâncias: desde o roteiro, elaborado com seu mestre declarado, o crítico Paulo Emílio Salles Gomes, até as filmagens no sítio de sua mãe e na casa de conhecidos. A produção é feita em regime de economia absoluta no orçamento, o que leva a soluções fotográficas inventadas durante o processo de realização, entre outras características. Talvez por força dessa contenção de despesas, os créditos que abrem o filme sejam narrados por uma voz pausada de mulher (e não escritos como habitualmente), introduzindo o espectador num ritmo sereno, propício à descrição do universo a ser retratado. O realizador declara na época de lançamento do filme: "Quis fazer um documentário sobre uma personalidade feminina", não por meio dos "fatos marcantes", mas, pelas "migalhas marcantes, os momentos despretensiosos onde o ser se revela sem a maquilagem da defesa ou do exibicionismo"1

No tempo presente da trama, Renato e Rosa (Arduíno Colasanti e Adriana Prieto), na cidade do Rio de Janeiro, rememoram os anos de convívio com a amiga Helena (Rosa Maria Penna), em Diamantina, Minas Gerais. Essas lembranças são avivadas pela projeção de alguns filmezinhos domésticos, rodados por Helena ou pelo seu tio (Humberto Mauro), e pela leitura do diário que a amiga deixa. A narrativa destaca a figura de Helena e o que acontece no tempo presente serve apenas de ligação entre uma recordação e outra, pois a parte principal da trama se concentra no tempo que passou, no tempo em que Helena viveu.

Tais registros domésticos elaboram o quadro familiar dessa personagem e o meio ambiente que a circunda: a paixão pelos gatos, o matriarcado que se representa pela mãe, avó, tias e empregadas e no qual se nota a ausência de pai ou irmão, o cotidiano com a empregada negra, as longas caminhadas pelo sítio da família, o moinho, a roda-d'água, as roupas no varal, as ruínas da casa de Xica da Silva. Helena circula por um cenário que evoca um passado glorioso de riqueza e de escravidão que a transcende a ponto de oprimi-la.

É o que conta o diário que se lê e algumas vezes chega a ser mostrado. Helena é tímida, ensimesmada, à procura de um arrebatamento, de preferência amoroso, que a projete para fora da família, do local e de si mesma. Entre ela e Rosa, desde a adolescência, existe uma estreita amizade, embora os temperamentos sejam bastante diferenciados. Helena une a preguiça com a agressividade dos felinos, segundo a descrição de um de seus amigos. Rosa, pelo contrário, é extrovertida e sem pudores e, portanto, parece não estar no aguardo de um acontecimento porque constrói seu futuro, sem indefinição.

Há um profundo envolvimento entre elas, e Helena procura em vão imitar o comportamento de Rosa. Na maioria das vezes, porém, se contenta com a assimilação imaginária da ação forte e fatal desempenhada por outras mulheres, como da lutadora do circo que vence o competidor, ou como Salomé, que pede a cabeça do homem que a rejeita, conforme observa em um filme. Ou até mesmo pelo fascínio da descoberta de que um animal inofensivo como o louva-a-deus tem a fêmea que devora o macho no acasalamento. Helena deseja o domínio sobre seu destino, mas parece incapaz de superar tanto o passado que a fascina quanto o presente que a impede de agir. Ela é "a estranha relíquia preservada em um mundo decadente"2, conforme sintetiza o realizador, e nem as tentativas de amor conseguem arrancá-la da geografia e da sentimentalidade locais.

Inicialmente, aceita um namorico com Renato, mas o despreza quando ele tenta o primeiro beijo. Numa viagem ao Rio de Janeiro, encontra Renato com outra namorada e parece enxergar a sua volta apenas a indolência que ela já conhece de Diamantina. Rosa, por sua vez, lhe apresenta o novo namorado. Tudo em volta de Helena se modifica e se reelabora, e ela se sente desafiada a escapar de seu mundo fechado. Conhece André (Joel Barcelos, 1936), um mineiro desgarrado, amigo do namorado de Rosa, a quem Helena se entrega, mas ele, moderno, cínico ou grosseiro, não compreende sua sensibilidade e seu pudor e a abandona, com uma vaga promessa de retorno. A teia afetiva de Helena se rompe, e ela, ainda mais solitária, se suicida, deixando-se engolir pela água do açude da fazenda. Compreende-se, então, que as lembranças de Renato e de Rosa, auxiliadas pelas memórias deixadas pela amiga em seu diário e nos filminhos domésticos, procuram encontrar, sem sucesso, o motivo de seu dramático, embora discreto, gesto final.

Não parece exagero dizer que, ao término da projeção, o espectador parece ter vivenciado a longa trajetória de uma personagem entre seu nascimento e a morte, não por ações mirabolantes, mas por meio de tudo aquilo que pode ocorrer durante a vida: a alegria, a reflexão existencial, o sofrimento, a busca do amor e da amizade e, principalmente, a presença do tempo inexorável de que falam os poetas. Não se trata de um tempo histórico, político ou social definido por uma trama na qual a personagem se insere, mas de um tempo íntimo, interior, próprio dessa personagem, em que se explicita a sua relação com o ambiente, a história e a sociedade que a cercam.

Desse ponto de vista, Memória de Helena é um filme de cineasta-poeta que encontra na articulação de materiais sonoros e visuais certa equivalência de ambiguidades, alusões e evocações de sentimentos provocadas por elementos da cultura ou da natureza que estão presentes na poesia lírica. Talvez por isso os comentários sobre o filme sempre destaquem sua beleza, seu romantismo, sua atmosfera sentimental, seu intimismo, o mundo de sensações, a viagem pelo universo de um álbum familiar.

Seu público é restrito, a despeito dos prêmios de melhor filme e melhor fotografia no Festival de Brasília de 1969. Lançado em uma única sala exibidora do Rio de Janeiro, em 1970, permanece apenas uma semana em cartaz. Mesmo com cortes exigidos pelo distribuidor de São Paulo, o filme não merece melhor sorte. O crítico Rubens Ewald Filho resume o fracasso: "Na verdade, só dois tipos de pessoa vão gostar muito do filme: os que conhecem (e gostam) de David e de Minas"3.

Como a poesia, além da incapacidade de atrair um grande público, o filme propicia inúmeras interpretações. É acusado por Luiz Carlos Merten, na época do lançamento, de ser um filme amador, de roteiro frouxo e sem conteúdo. Antonio Gonçalves Filho vê um filme político a mostrar concretamente os efeitos da repressão social. A publicidade em torno dele chega a dizer que é um filme pedagógico que retrata o comportamento sentimental das mulheres de antigamente.4

Talvez seja apenas um filme de cineasta e escritor que não se furta às citações variadas de suas fontes. Da literatura, Neves aponta como influência Dusty Answer, de Rosamund Lehman, e École des Femmes, de André Gide, mas o modelo parece ser Minha Vida de Menina, livro autobiográfico de Helena Morley, que publica na idade madura as anotações de seu diário, as lembranças pessoais de uma adolescente que registra com acuidade a decadência política e econômica do fim do século XIX da cidade de Diamantina.5

São várias também as referências ao universo cinematográfico: o filme O Evangelho segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini, a homenagem explícita aos realizadores Humberto Mauro e Glauber Rocha, o ritmo lento de Mouchette (1967), de Robert Bresson, ou de O Padre e a Moça (1965), de Joaquim Pedro de Andrade. O que permite, hoje, extrapolações: o filme "pode ser visto como uma espécie de balanço sentimental do cinema novo produzido ao longo dos anos 1960 – quase um epitáfio desse movimento que vive nessa década a sua fase mais produtiva"6. Seja como for, tirar do ponto de vista da personagem Helena, trata-se de um melancólico relato sobre a dor irreparável das perdas.

Notas
1 ALENCAR, Miriam. Jornal do Brasil, 16 nov. 1969. 
2 CARVALHO, Maria do Socorro. Memória de um cinema, p. 131.
3 Jornal da Tarde, 16 jun. 1970.
4 MERTEN, Luiz Carlos. Num sonho de cinema. p. 56; GONÇALVES FILHO, Antonio. A palavra náufraga. p. 149; citado por ALENCAR, Miriam. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 mar. 1970. 
5 Conforme depoimento de David Neves, citado por MONTEIRO, José Carlos. O Globo, Rio de Janeiro, 24 out. 1969.
6 CARVALHO, Maria do Socorro. Op. cit. p.130.

Fontes de pesquisa 12

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  • ALENCAR, Miriam. Entrevista com David Neves. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 16 nov. 1969.
  • ALENCAR, Miriam. Memória de Davi. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15 mar. 1970.
  • CALIL, Carlos Augusto. O Jardim Particular de David. In: NEVES, David E. Telégrafo Visual: crítica amável de cinema. São Paulo : Editora 34, 2004. p. 9-24.
  • CARVALHO, Maria do Socorro. Memória de um cinema. In: Estudos de Cinema 2000 Socine. Porto Alegre: Sulina, 2001. p. 130-145.
  • CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL. David Neves: muito prazer. Rio de Janeiro, 2004. p. 74-79.
  • EWALD FILHO, Rubens. Um filme para os amigos (e para os mineiros). Jornal da Tarde, São Paulo, 16 jun. 1970.
  • GONÇALVES FILHO, Antonio. A palavra náufraga: ensaios sobre cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 162-163.
  • GONÇALVES FILHO, Antonio. Memória de Helena. In: LABAKI, Amir (org.). O Cinema Brasileiro: de O Pagador de Promessas a Central do Brasil. São Paulo: Publifolha, 1998.
  • MELO, Luis Alberto Rocha. Memória de Helena, de David Neves. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/39/memoriadehelena.htm. Acessado em 26 nov. 2009.
  • MERTEN, Luiz Carlos. Um sonho de cinema. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, 2004. [Publicado originalmente em Folha da Manhã, 26 jun. 1970].
  • PINTO, Pedro Plaza. Paulo Emilio e a Emergência do Cinema Novo: débito, prudência e desajuste no diálogo com Glauber Rocha e David Neves. Tese de doutorado. São Paulo: ECA/USP, 2008. p. 46-60.
  • SOUZA, José Inácio de Melo. Paulo Emilio no Paraíso. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 551-554.

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