Lance Maior
Texto
Histórico
Lance Maior é o primeiro longa-metragem do catarinense Sylvio Back (1937), com formação estudantil e profissional no Paraná, onde realiza uma série de documentários de curta metragem, institucionais ou de cunho pessoal, que têm como tema a cidade de Curitiba. Lance Maior, embora de ficção, contém o motivo documental de seus trabalhos anteriores.
Os letreiros de apresentação, além de nomear sua equipe técnica e artística, cumprem uma dupla função: delineiam o espaço moderno, urbano e progressista que vai acomodar os personagens e mostram panoramas de Curitiba como se fossem partes de um documentário sobre a cidade, antecipando um recurso narrativo que se repete no decorrer do filme. Inúmeras vezes, enquanto a imagem registra em tom documental ruas, comércio, trânsito, paisagens e tipos humanos de Curitiba ou de Antonina (outro espaço de locação), o som avança a trama ficcional por meio de monólogos ou diálogos em voz over dos personagens que estão completamente fora de cena ou que dela participam apenas no final.
O crítico Mauricio Rittner interpreta essa forma de representação como uma necessidade dramática de revelar "um cenário heterogêneo, denso de interesse humano, povoado de gente comum", que funciona como um suporte para os diálogos over que "a princípio causam estranheza, mas [que] se nota que eles acompanham a estrutura do filme: uma tensão permanente entre fantasia e realidade"1, entre uma suposta "realidade objetiva" e os desejos de seus três personagens centrais.
O prólogo esboça o perfil psicológico de cada um deles com a utilização de recursos de linguagem de diferentes veículos de expressão. Cristina (Regina Duarte - 1949) vem retratada como uma moça fina, de bom gosto, "de bem" com a vida, que transmite, como garota-propaganda de uma peça de publicidade da época, os padrões da moda, da beleza e do consumo. Neusa (Irene Stefânia) aparece como uma moça romântica, cujo comportamento está representado por gestos e falas estereotipados que reproduzem as fotonovelas, um tipo de leitura muito popular nos anos 1950 e 1960. Mário (Reginaldo Faria) é apresentado por meio de uma coletânea de fotografias domésticas que o mostram desde seus primeiros anos de vida até a idade adulta, com a voz do pai o aconselhando a estudar, fazer um bom casamento e subir na vida. Só então, a trama começa a se desenvolver, a partir de um triângulo amoroso que o tem como eixo e permite contrapor seu cotidiano medíocre e o de Neusa ao mundo idealizado que Cristina representa. Ele, um jovem da classe média, quer apenas tirar proveito sexual de Neusa, já que ele despreza o nível social ao qual ela pertence. Ela é balconista de loja, filha de lavadeira, mora no subúrbio da cidade e vislumbra a possibilidade de ascensão social pelo casamento com alguém de posição financeira superior. Mário pode ser o homem de seus sonhos: bonito, estudante universitário, bancário, capaz de se tornar um sujeito bem-sucedido.
Ele, por sua vez, almeja escapar de uma vida provinciana e de relativa pobreza para suas ambições, e, para atingir esse objetivo, Cristina é a pessoa mais adequada. Proveniente de família burguesa, ela possui o que de melhor o mundo capitalista pode lhe oferecer: casa espaçosa, boa faculdade, um automóvel, lazer à beira da piscina de um clube. O que atrapalha os planos de Mário em relação a Cristina é que a moça o vê como um bem desfrutável, um passatempo que a mantém dona da situação enquanto aguarda, com o incentivo da família, um casamento que resguarde sua posição de classe.
Para aprofundar o conflito de ordem social e existencial, em que cada personagem vê o outro como escada para atingir tanto a felicidade individual quanto um lance mais alto nos estratos hierárquicos da sociedade, o filme intercala três linhas de ação. Na primeira, os personagens comentam seus desejos, recalques, expectativas quanto ao futuro para uma espécie de coro formado pelos amigos da faculdade ou do trabalho. As cenas acontecem em bares, no clube, no vestiário da loja, no interior do banco, na rampa da faculdade. Na segunda, se adensa o triângulo amoroso. Neusa e Mário namoram, o rapaz se mostra audacioso e ela, alegando recato, procura arrancar dele uma atitude conveniente, insistindo que sexo só depois de firmado o compromisso matrimonial. Mário e Cristina também namoram, o rapaz propõe casamento, mas a moça aprecia apenas o jogo da sedução, defende a manutenção de um "romance moderno com total liberdade" e desconversa. Na terceira linha de ação, Neusa e Mário são colocados diante da realidade mais bruta que vai desmanchando pouco a pouco todas as possibilidades de concretização de seus sonhos. Mário repele de vez as propostas de casamento que Neusa reitera; e assim, desiludida, ela acaba por ceder seu bem máximo - a virgindade - a um conquistador que lhe parece rico (porque tem um carro) e lhe oferece uma vaga promessa de compromisso "sério". Mário, por sua vez, padece de um desejo sexual crônico, para o qual Neusa e Cristina não são a solução mais satisfatória. Restam a ele as prostitutas, cujos encontros noturnos o tornam portador de uma doença venérea, ou a masturbação em seu solitário quarto de pensão.
O epílogo não deixa dúvidas sobre a desarmonia existencial de seus personagens e o fracasso decorrente. Neusa termina por mendigar o amor de um pretendente indesejado, de condição social semelhante à sua. Cristina, posando de "moderninha", relata a uma amiga uma suposta entrega sexual a Mário, isso em público e em pleno dia, embora já planeje seu futuro casamento com um pretendente de seu nível. Mário, embriagado, fantasia com amigos o futuro casamento com Cristina, só percebendo o ridículo quando literalmente cai ao chão e chora, olhando fixamente para a câmera.
Causa estranheza, nos dias de hoje, o tom patético do fechamento do filme, e que se antepõe à jocosidade da abertura, mas ele obedece a um objetivo. Back afirma, na época, querer "uma aproximação direta quase didática, ou mesmo propositadamente didática, das contradições do homem comum assoberbado com o enganoso brilho propagandístico"2. A aproximação direta de que fala Back propõe a construção de um cinema de temática urbana e moderna, com a ausência de complicadas pirotecnias formais e narrativas cuja dramaticidade fosse suficientemente expressiva, visando assim atingir um maior número de espectadores, que identificassem no retrato de seus jovens personagens despolitizados a angústia proveniente da alienação.
Esse anseio político também procura marcar presença no cinema brasileiro do período. Back busca um filme que não recusa o legado das preocupações sociais do cinema novo, mas evita o hermetismo de complexas estruturas alegóricas que, conforme certa crítica, afastam o público das salas de exibição. Ele se sente desafiado a atrair a atenção do público com um produto de natureza realista e autêntica, cujo efeito transformador sobre a mente dos espectadores se dê "pela clareza comunicativa da obra, ou pelo questionamento dos valores sociais", ao contrário dos filmes do cinema novo, mais intelectualizado, cujo "efeito transformador [para Glauber Rocha, por exemplo] era buscado pela alteração das próprias 'regras comunicativas'", como conclui a análise de Rosana Kaminski3.
A posição de Back não está isolada. Outros filmes do mesmo ano também parecem orientar-se por essa recomendação, entre eles O Homem Nu e Bebel, Garota Propaganda. Maurice Capovilla (1936-2021), o realizador de Bebel, ao destacar o lançamento promissor de Lance Maior, assina uma espécie de manifesto em favor de um neorrealismo atualizado: "Está faltando um cinema sectário, político", que assuma "um compromisso claro e insofismável com o realismo", no qual os personagens "serão menos diretos, mais complexos, tremendamente ambíguos e consequentemente mais humanos"4. A nova proposta recebe aplausos da crítica e o prêmio de melhor atriz para Irene Stefânia, no Festival de Brasília. A comunicabilidade do filme e/ou seu empenho comercial (como a presença no elenco de uma estrela ascendente no mundo da televisão), torna-o bem-sucedido em termos de bilheteria: recorde de público em São Paulo, sucesso no Rio de Janeiro e, apenas em Curitiba, 32 mil espectadores em três semanas.
Notas
1 Veja, 9 out. 1968.
2 O maior lance de Silvio. Jornal do Brasil, 17-18 nov. 1968. Caderno B, p.5.
3 Poética da angústia, p. 66.
4 A Gazeta, 30 maio 1968.
Mídias (1)
Fontes de pesquisa 10
- BIÁFORA, Rubem. Lance maior. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 02 mar. 1969.
- CAPOVILLA, Maurice. Viva o sectarismo. A Gazeta, 30 mai. 1968.
- DIKOFF, Christo. Paraná - primeiro lance. Filme Cultura, Rio de Janeiro, v.3, n.13, nov./dez. 1969, p. 30-31.
- FASSONI, Orlando L. Lance maior. Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 mar. 1969.
- GOIDA. Nas primeiras fileiras. Porto Alegre : Unidade Editorial, 1998, p. 93-94.
- KAMINSKI, Rosane. Poética da Angústia: história e ficção no cinema de Sylvio Back (1960-1970). 2008. Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Paraná, Paraná.
- LANCE maior para o cinema brasileiro. Folha da Tarde, São Paulo, 07 mar. 1969.
- LAURA, Ida. Lance Maior, fita autêntica. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 13 mar. 1969.
- O MAIOR lance de Silvio. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 17-18 nov. 1968, cad. B, p.5.
- RITTNER, Mauricio. Triste Paraná. Veja, São Paulo, 09 out. 1968.
Como citar
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LANCE Maior.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra67277/lance-maior. Acesso em: 03 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7