O espírito das roupas: a moda no século dezenove
Texto
O Espírito das Roupas: a moda no século dezenove (1987) é uma obra de autoria de Gilda de Mello e Souza (1919-2005), resultante de sua tese de doutorado A Moda no Século XIX: Ensaio de Sociologia Estética, defendida na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da Universidade de São Paulo (USP) em 1950. A obra toma como objeto de estudo a moda no século XIX, temática então inédita no incipiente campo acadêmico brasileiro.
Publicada no ano seguinte na Revista do Museu Paulista, a tese é transformada em livro apenas em 1987, quando é editada pela Companhia das Letras. A pesquisa é desenvolvida através do olhar polivalente da autora, cuja formação é na área da Sociologia, o que lhe rende análises que abrangem desde as relações das artes visuais e da literatura com a moda, até as questões sociais, econômicas e psicológicas que a fundamentam. Para isso, Gilda de Mello e Souza mobiliza uma diversidade de fontes, como pinturas, gravuras, fotografias e periódicos referentes ao período estudado, além de mobilizar uma ampla bibliografia que inclui textos de referência e obras clássicas da literatura.
Conforme indicado pela autora, o tema de pesquisa é eleito dentre proposições sugeridas por seu orientador, o sociólogo francês Roger Bastide (1898-1974), figura importante da “missão francesa” na Universidade de São Paulo1. Gilda atribui aos interesses ecléticos do professor a introdução a um objeto de estudo considerado insólito à época. Bastide também é um dos responsáveis por apresentá-la a um método de análise multidisciplinar.
O livro está organizado em cinco capítulos, divididos entre três temáticas distintas. Após uma breve introdução que trata do conceito de moda e das distintas abordagens sobre o tema, o primeiro capítulo introduz a discussão em torno dos pontos de contato entre seu objeto de estudo e as diferentes formas artísticas em “A moda como arte”. Em seguida, a autora analisa como as questões de gênero são representadas na moda nos capítulos “O antagonismo” e “A cultura feminina”. A parte escrita é arrematada com o debate em torno das questões econômicas e sociais que constituem a moda nos capítulos “A luta das classes” e “O mito da borralheira”.
Gilda inclui ainda como apêndice trechos de três referências bibliográficas em um breve glossário de três itens: um trecho de Millia Davenport sobre o rapé, uma transcrição do periódico A Estação sobre o xale e outro excerto da Revista Popular sobre o colete ou espartilho. Por fim, a autora apresenta um caderno de fotografias da época, uma seleção de retratos oriundos de arquivos privados intitulada "O gesto, a atitude, a roupa do brasileiro, como foram fixados pela fotografia de meados do século XIX à Primeira Grande Guerra"2.
As análises multidisciplinares e a diversidade de fontes visuais, literárias e bibliográficas reunidas pela autora se somam à escrita de caráter ensaístico, apresentando como resultado uma obra que percorre com tanta precisão quanto sensibilidade o multifacetado fenômeno da moda. Nesse sentido, não é apenas o seu objeto que transita entre a Estética e a Sociologia, mas também seu método de exploração do tema.
Ainda que a obra tenha adquirido importância enquanto estudo pioneiro no campo da moda no Brasil, em sua recepção inicial o trabalho suscita críticas referentes a sua forma e a seu conteúdo. De um lado, o estilo de escrita ensaística é considerado inapropriado para um trabalho sociológico, visto que, segundo tal perspectiva, as análises resultantes de observações empíricas devem ser descritas de modo igualmente objetivo. De outro, o tema da moda é lido como questão menor por estar associado à futilidade e à feminilidade.
O sucesso da obra quando da publicação como livro, quase quatro décadas após a conclusão da tese, redimensiona a severidade de tais críticas. Com a multiplicação dos cursos superiores em Moda e a definitiva inclusão do tema entre os objetos de pesquisa em Ciências Humanas e Sociais, O Espírito das Roupas ganha reconhecimento por suas qualidades intrínsecas e por fornecer um rico arsenal teórico e analítico de questões fundamentais no estudo da moda – da relação do vestuário com o corpo à revisão crítica da moda como algo essencialmente feminino.
Em 2019, além de ganhar novo tratamento gráfico, o livro é reeditado e reimpresso. A publicação é novamente de responsabilidade da Editora Companhia das Letras – desta vez, em parceria com a Editora Ouro sobre Azul.
Se o trabalho não é incluído entre os cânones do pensamento social brasileiro, isso se deve à cronologia particular da história da moda no Brasil, ainda subordinada à influência europeia e distante da discussão da formação de uma moda nacional no período analisado pela autora. Não obstante, O Espírito das Roupas é considerado um dos marcos fundadores do campo da moda no Brasil.
Ao reunir diferentes formas artísticas e campos do saber para analisar seu objeto, Gilda de Mello e Souza evidencia a abrangência do fenômeno da moda à medida em que demonstra a riqueza intelectual de sua obra. Nesse sentido, O Espírito das Roupas é uma leitura que informa tanto o estudo da moda como a pesquisa interessada em seu método de análise estético e sociológico.
Notas
1. A missão francesa na Universidade de São Paulo (USP) é parte do projeto diplomático e cultural de cooperação intelectual entre a França e a América Latina. Na fundação da USP, em 1934, jovens intelectuais e professores franceses são convidados a integrar o quadro de docentes da Universidade para abrir e consolidar diferentes cursos universitários. Além de Roger Bastide, o historiador Fernand Braudel (1902-1985) e o antropólogo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) são nomes de destaque entre os integrantes da missão francesa.
2. Na edição de 1987, afora as pinturas, as imagens não são creditadas. A edição de 2019, por sua vez, indica que a maior parte das imagens pertencem ao IEB- Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo/Fundo Gilda e Antonio Candido de Mello e Souza. Outras imagens pertencem, em sua maioria, ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, Coleção José Mindlin, Coleção Maria Dulce Müller Carioba Sigrist, entre outras coleções cujas referências são mais pontuais.
Fontes de pesquisa 6
- ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Notas sobre o método crítico de Gilda Mello e Souza. Discurso, São Paulo, n. 35, pp. 11-27. 2005.
- ARANTES, Paulo Eduardo; ARANTES, Otília Beatriz Fiori. Sentido da formação: três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa .São Paulo: Paz e Terra, 1997.
- BONADIO, Maria Claudia. Algumas anotações (e questões) sobre Gilda de Mello e Souza e a moda como objeto de estudo. Revista Prâksis, Novo Hamburgo, vol. 1, pp. 5-20, jan./jun. 2017.
- GIMENES, Max. Uma sociologia elegante e muito bem acompanhada – resenha de "O espírito das roupas", de Gilda de Mello e Souza. Revista Todavia, [S.l.], vol. 1, n. 1, jul. 2016, pp. 152 a 158. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/revistatodavia/issue/view/4250/909. Acesso em: 14 ago. 2024.
- PONTES, Heloisa. Modas e modos: uma leitura enviesada de “O espírito das roupas”. Cadernos Pagu, Campinas, v. 22, pp.13-46. 2004.
- PRADO, Luís André do. Gilda de Mello e Souza e a emergência do campo da moda no Brasil (1800-1990). Revista de História, São Paulo, nº 178, pp. 1-31. 2019.
Como citar
Para citar a Enciclopédia Itaú Cultural como fonte de sua pesquisa utilize o modelo abaixo:
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O espírito das roupas: a moda no século dezenove.
In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo: Itaú Cultural, 2025.
Disponível em: https://front.master.enciclopedia-ic.org/obra60575/o-espirito-das-roupas-a-moda-no-seculo-dezenove. Acesso em: 04 de maio de 2025.
Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7