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Enciclopédia Itaú Cultural
Artes visuais

Auto-Retrato

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 11.08.2015
1984
Reprodução fotográfica autoria desconhecida

Auto-Retrato, 1984
Iberê Camargo
Óleo sobre tela, c.i.d.
35,00 cm x 25,00 cm
Coleção Maria Camargo, Fundação Iberê Camargo (Porto Alegre, RS)

Neste pequeno Auto-Retrato, de 1984, Iberê Camargo (1914-1994) promove uma espécie de síntese das questões que movem sua arte por mais de meio século. Aí estão amalgamados o estilo tenso, o gesto expressivo e a relação carnal com a pintura. Os traços são sucintos, vibrantes, esboçando uma fisionomia cansada, marcada pelos sinais da idade. O olha...

Texto

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Neste pequeno Auto-Retrato, de 1984, Iberê Camargo (1914-1994) promove uma espécie de síntese das questões que movem sua arte por mais de meio século. Aí estão amalgamados o estilo tenso, o gesto expressivo e a relação carnal com a pintura. Os traços são sucintos, vibrantes, esboçando uma fisionomia cansada, marcada pelos sinais da idade. O olhar penetrante, que parece mirar por trás dos ombros do espectador; a grande narina que se abre no centro da tela; as sobrancelhas erguidas; o queixo amplo; e o rosto largo remetem imediatamente à imagem do artista, então já consagrado como um dos grandes nomes da segunda geração modernista brasileira.

Na obra analisada não há uma separação radical entre o rosto apresentado em close e o fundo conturbado que ocupa as bordas da tela. A distinção entre os dois campos se dá apenas pelos traços negros que contornam o rosto de maneira bastante tosca e irregular e, sobretudo, por uma sutil, mas importante, diferença cromática e de aplicação da tinta. Seu rosto parece estar enclausurado, ocupando quase a totalidade da tela e travando um embate com o entorno, também convulsivo. É como se seu trabalho adquirisse densidade expressiva exatamente dessa indiferenciação. O crítico Rodrigo Naves fala em “aspecto movediço” ao tratar dessa relação tensa entre o espaço, a figura e as áreas de cor na pintura de Iberê Camargo.1

De forma geral, a pintura é marcada por uma mescla vibrante de tons indistintos. No entanto, o rosto quase caricatural é marcado pelo uso de traços mais precisos e delicados, como que desenhados com tinta, num gesto rápido e com grande reverberação luminosa. Tons de branco e amarelo dão certa corporeidade à fisionomia. Nas bordas, por sua vez, predominam o azul e o vermelho. Espalhadas pela espátula, as massas de cor se sobrepõem numa mescla indistinta e parecem tragar a luz que incide sobre ela.

Essa manipulação da tinta a óleo aplicada sobre a tela por meio de diferentes instrumentos – do pincel comum e da espátula à colocação diretamente do tubo – gera uma combinação perturbadora de cores e densidades, que remete de forma clara à materialidade instável das pinturas abstratas que realiza nas décadas de 1960 e 1970. O crítico Paulo Venancio Filho destaca esse aspecto material da produção do pintor, considerando-o uma espécie de traço típico do artista, que ao mesmo tempo o distingue e o insere na arte de sua época: “Iberê fratura sombra e luz; a cor surge castigada, torcida, esbatida, nunca clara nem límpida. Com a espátula, recorta, escava e retira da escuridão uma luminosidade sinistra e inquietante”.2

O próprio Iberê Camargo refere-se muitas vezes ao caráter material e expressivo de sua produção: “A fatura de meus quadros é densa, pastosa, por uma necessidade de expressão, por uma necessidade quase tátil e sensual no emprego da matéria. Minha paleta, de tons frios, grises azulados, roxos, negros, serve à minha visão subjetiva do mundo”,3 afirma o artista, que tem por marca um espírito militante e uma visão crítica do mundo.

Iberê Camargo conta, em Esboço Autobiográfico,4 que sua obra começa a “mergulhar na sombra” no fim da década de 1950. Esse caráter sombrio, dramático, se prolonga nas fases subsequentes, de teor abstrato, como na série dos carretéis ou dos núcleos expansões e contrações espaciais. E mantém, ou reforça essa tônica, no momento em que a figura ressurge em sua produção, no início dos anos 1980. É sobretudo nesses trabalhos da maturidade que, nas palavras de Venancio Filho, “o pintor invade o quadro e se depara consigo mesmo, personagem e espectador”.5 Alguns atribuem esse retorno tardio à figuração ao surgimento de uma nova cena artística, e a questões como autoria e representação recolocadas em pauta pelas discussões artísticas contemporâneas. Outros vinculam o processo a acontecimentos traumáticos na vida do artista.6 Afinal, há em sua obra um caráter autobiográfico confesso.7

Escritor de talento, Iberê Camargo procura também definir em palavras essa relação ambivalente, às vezes assustadora, entre o indivíduo e seu trabalho, entre o homem e sua representação, descrevendo a força das cicatrizes, das lembranças como elemento constitutivo da obra pictórica. Em depoimentos e textos como O Duplo e Esboço Autobiográfico, ele trata desse anseio da autorrepresentação, marcado ao mesmo tempo pelo desejo da existência e  receio em relação à própria figura.  Registra-se na fatura da tinta e na imagem da tela, e o faz sem autocomplacência, sem procurar mascarar ou construir para si uma imagem favorável. Isso ocorre em outros trabalhos do mesmo período, como por exemplo na tela Eu, pintada no mesmo ano e pertencente à Coleção Gilberto Chateaubriand – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ).

“Como modelo me transmuto em forma. Sou, então, pintura. Ao me retratar, gravo minha imagem no vão desejo de permanecer, de fugir ao tempo que apaga os rastros. O autorretrato é uma introspecção, um olhar sobre si mesmo. É ainda interrogação, cuja resposta é também pergunta. Essa imagem que o pintor colhe na face do espelho, ou na superfície tranquila da água – penso no Narciso de Caravaggio –, revela como ele se vê e como olha o mundo”, conclui. E confessa: “Não tenho presente quantos autorretratos pintei. Se retratar-se revela narcisismo, todos pintores o são”.8

Notas
1 “Pressionadas (as figuras) pelo espaço, ameaçadas por essas áreas de cor que tendem a reduzir tudo a si – e que apenas alcançam esse aspecto movediço por meio da pintura de Iberê Camargo.” In: NAVES, Rodrigo. O vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.79.
2 VENANCIO FILHO, Paulo. Iberê Camargo. Rio de Janeiro: Fundação Iberê Camargo, 2003. p. 43.
3 CAMARGO, Iberê. Um esboço autobiográfico. In: ______. Gaveta dos guardados. São Paulo: Edusp, 1998. p. 185.
4 Idem. O texto também pode ser consultado pela internet. Disponível em: http://www.iberecamargo.org.br/content/artista/pensamentos_01.asp
5 VENANCIO FILHO, op. cit., p. 64.
6 No início dos anos 1980, Iberê Camargo mata um homem no Rio de Janeiro, em uma discussão de rua, e é absolvido por legítima defesa.
7 "Arte e vida confundem-se” e “Pinto porque a vida dói” são algumas das declarações feitas pelo artista. Sobre a questão ver CAMARGO, op. cit.
8 Trecho de entrevista concedida a Lisette Lagnado e reproduzida por ZIELINSKI, Mônica. Catálogo raisonné Iberê Camargo - volume I: gravuras. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2006. p.101

Fontes de pesquisa 7

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  • ARAÚJO, Olívio Tavares de. O olhar amoroso: textos sobre arte brasileira. São Paulo: Momesso, 2002. 336 p.
  • BRITO, Ronaldo. Experiência crítica: textos selecionados. Organização Sueli de Lima. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
  • CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados. Organização Augusto Massi. São Paulo: Edusp, 1998. 189 p., il. p&b.
  • MASSI, Augusto. Carretéis da memória. In: CAMARGO, Iberê. Gaveta dos guardados. Organização Augusto Massi. São Paulo: Edusp, 1998. 189 p., il. p&b.
  • NAVES, Rodrigo. O Vento e o moinho: ensaios sobre arte moderna e contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. 531 p., il. p&b.
  • TEIXEIRA, Lucia. Sou, então, pintura: em torno de auto-retratos de Iberê Camargo. Alea, vol. 7, número 1, jan-jul. 2005.
  • ZIELINSKY, Mônica. Catálogo raisonné Iberê Camargo - volume I: gravuras. São Paulo, SP: Cosac & Naify, 2006. 504 p.

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