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Enciclopédia Itaú Cultural
Teatro

Vaga Carne

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 11.04.2024
31.03.2016 Brasil / Paraná / Curitiba – Teatro Paiol
Primeira peça teatral solo da atriz, dramaturga e diretora Grace Passô (1980), Vaga carne radicaliza sua pesquisa em dramaturgia contemporânea, com a proposição insólita de uma voz como personagem e o corpo de uma mulher como cenário. Texto e cena jogam com o desacordo entre corpo e linguagem, apresentando um processo de emergência do discurso, ...

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Primeira peça teatral solo da atriz, dramaturga e diretora Grace Passô (1980), Vaga carne radicaliza sua pesquisa em dramaturgia contemporânea, com a proposição insólita de uma voz como personagem e o corpo de uma mulher como cenário. Texto e cena jogam com o desacordo entre corpo e linguagem, apresentando um processo de emergência do discurso, da identidade e da alteridade, com as particularidades da vivência social de uma mulher negra. A obra foi publicada em livro pela editora Javali e transformada em filme homônimo (2020), codirigido por Ricardo Alves Jr. (1982). 

Com a estreia no Teatro Paiol, durante o Festival de Curitiba de 2016, a peça marca um novo momento da trajetória da artista, após se despedir do grupo Espanca!, que funda na cidade de Belo Horizonte 12 anos antes. Em Vaga carne, a atriz avança de modo inédito na experimentação de linguagem, acompanhada na equipe de criação por colaboradores de áreas diversas: a diretora e pesquisadora do movimento Kênia Dias (1974), a iluminadora e diretora Nadja Naira (1972), a produtora e socióloga Nina Bittencourt e o diretor e cineasta Ricardo Alves Jr.  “Esse foi um trabalho em que me permiti radicalizar em alguns pontos, o que é muito importante para um artista. Ele expandiu minha experiência de escrita e de atuação", avalia a atriz1

Em um palco vazio, sob o breu, o público se acomoda enquanto uma voz em off enuncia: “Vozes existem. Vorazes. Pelas matérias”. No princípio do espetáculo, é o verbo que se apresenta, destituído de corpo, como um ser não humano, errante, que descreve o modo como adentra distintas matérias – café, mostarda, cão, pato, cavalo etc. – e as sensações que experimenta em cada uma delas. Até que adentre um corpo humano, investigue seu interior e se deixe afetar por suas consistências e fluxos.

Para o crítico de cinema Juliano Gomes, a força da atuação está em “ver e sentir aquele corpo em sua inteireza se explorar em seu vertiginoso potencial de estranhamento, naquele espaço nu”. Ainda segundo ele, a inadequação entre voz e corpo constitui “um dos trabalhos mais relevantes da arte brasileira do nosso tempo”2.

A teatralidade acontece no corpo da atriz, que acentua sua dimensão espacial e sua presença, explorando os desacordos entre palavra e gesto, carne e sentido, brechas para o improviso em resposta ao público. A iluminação recorta espaços em seu corpo e instaura zonas de interioridade e exterioridade – a exemplo da longa sequência no breu e do momento em que uma tarja de luz enquadra o olhar –, capturando algo do espanto desse encontro encenado entre corpo e linguagem e do jogo imaginário de espelhos do qual nasce o sujeito. 

Tal constituição do sujeito, dividido pelo choque entre linguagem e corpo, engendra uma experiência de humanização, que passa do inanimado ao reconhecimento de identidades sociais, até encontrar como limite a vida e a morte. Para tanto, com o tempo, a voz encarnada se dirige ao público, demanda nomeações e responde aos afetos causados por vozes de outros. 

Conforme observa a crítica Soraya Martins, tem-se a “emergência do novo de onde se pode refletir sobre gênero, lugar de fala, questões raciais e sociais e também construir espaços e relações que podem reconfigurar, material e simbolicamente, um território. Uma espécie de poética da relação em que está em jogo a capacidade de lidar com a opacidade do sentido”3

A peça recebe os prêmios Cesgranrio e Shell RJ, de 2016, e o Leda Maria Martins, de 2017, e compõe a programação de festivais como o TREMA!, em Recife, o Melanina Acentuada, em Salvador, o Porto Alegre em Cena, o Cena Contemporânea de Brasília e a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

Em 2019, a peça foi “transcriada” para o cinema considerando as especificidades de linguagem audiovisual para reinvenção da experiência propiciada pela peça. O teatro se torno cenário, com várias câmeras sobre o palco, e no lugar da plateia um pequeno grupo de artistas-espectadores contracenam com Passô: a produtora e diretora Aline Vila Real, com quem trabalha em sua passagem pelo Espanca!, o cineasta André Novais (1984), que a dirige no longa-metragem Temporada (2018), a cantora Dona Jandira (1938), os atores Zora Santos (1953), Hélio Ricardo e Sabrina Rauta (1989), entre outros.   

No filme, alguns elementos simbólicos se somam à cena, como a canção “Juízo final”, de Nelson Cavaquinho (1911-1986), e, já nos créditos, vozes de Dilma Rousseff (1947), Marielle Franco (1979-2018), Nina Simone (1933-2003) e outras.

Para a crítica e curadora Tatiana Carvalho (1967), a atriz transfigura “os códigos da linguagem no teatro, no cinema, em experimentos sonoros a partir de uma consciência do que alguém como ela é num mundo como o de hoje e num país como o nosso. Ela compreende que a construção da identidade é algo que sempre está em movimento”4.

Juliano Gomes destaca ainda, na obra cinematográfica, “a tela preta e o silêncio, que são as duas pontas desta singular narrativa”, sugerindo o desaparecimento e a opacidade. “Vaga Carne é uma interrogação encarnada. Tanto que termina na sugestão de um complemento que não vem. A mulher diz que ‘vai dizer’ e não ouvimos o quê. No teatro, esta cena era escura; no filme, sua voz some, fica o alto ruído de fundo”5, descreve.

Nas fraturas entre o verbo e a carne, entre o eu e o outro, estranhando o interior e o exterior do corpo como vias abertas à atravessamentos imprevistos, Vaga carne escava os limites das linguagens discursiva, teatral e cinematográfica e das tensões entre identidade e segregação, propondo uma poética e uma contraditória experiência estética e política que sobressai na cena artística contemporânea.

Notas

1. ROMAGNOLLI, Luciana. Dramaturga mineira Grace Passô descortina racismo e machismo. Folha de S.Paulo, 18 jun. 2017. Ilustríssima. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/06/1893239-dramaturga-mineira-grace-passo-descortina-racismo-e-machismo.shtml. Acesso em: 8 maio 2022.

2. PASSÔ, Grace. Vaga carne. Belo Horizonte: Javali, 2018.

4. GOMES, Juliano. A fartura da fratura. Cinética, 21 maio 2020. Disponível em: http://revistacinetica.com.br/nova/vaga-carne-juliano/. Acesso em: 8 maio 2022. 

5. CARVALHO, Tatiana. Grace Passô: acolher, expandir, transfigurar. Ficine, 2021.  Disponível em: https://ficine.org/2021/12/07/grace-passo-acolher-expandir-transfigurar/. Acesso em: 8 maio 2022.

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