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Enciclopédia Itaú Cultural
Teatro

Cuida Bem de Mim

Por Editores da Enciclopédia Itaú Cultural
Última atualização: 15.02.2016
17.10.1996 Brasil / Bahia / Salvador
Símbolo maior de um projeto artístico e pedagógico lançado pelo Liceu de Artes e Ofícios da Bahia em 1996, numa parceria com a então Secretaria da Educação do governo baiano, o espetáculo Cuida bem de mim representa muito mais do que a realização competente de um trabalho cênico.

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Histórico

Símbolo maior de um projeto artístico e pedagógico lançado pelo Liceu de Artes e Ofícios da Bahia em 1996, numa parceria com a então Secretaria da Educação do governo baiano, o espetáculo Cuida bem de mim representa muito mais do que a realização competente de um trabalho cênico.

Nasce como o principal alicerce do projeto local Quem Ama Preserva, numa tentativa de solucionar o problema da depredação nas escolas públicas, e vira um grande modelo de tecnologia de educação impulsionado pela prática teatral e com estrutura pioneira no Brasil.

Em dez anos de exibição e com duas versões levadas ao palco pelo diretor Luiz Marfuz, consegue mobilizar alunos, professores, diretores e funcionários de 250 escolas e atingir uma audiência de mais de 217 mil espectadores em cerca de 800 apresentações.

Ganha o Troféu Bahia Aplaude na categoria destaque do teatro baiano em 1996 e o reconhecimento da Câmara Americana do Comércio, que elege o projeto Quem Ama Preserva a melhor experiência do país na área de educação em 1997.

A estrutura de Cuida bem de mim é fruto do contato olho no olho entre a sua equipe e o público alvo. Dez oficinas dramático-pedagógicas realizadas em escolas públicas de Salvador contribuem decisivamente para a primeira versão do espetáculo. O pensamento e as emoções dos participantes das oficinas, dentre eles mais de 500 líderes estudantis, dão matéria prima para os conflitos do enredo e os perfis dos personagens.

A trama se passa num fictício colégio, cujo prédio de instalações decadentes demonstra a urgência de uma nova reforma. Feita sob medida para falar a língua do público jovem, a trilha sonora, assim como a iluminação, serve de suporte para os extratos emocionais das cenas, enquanto o figurino traz uma concepção realista e bem representativa do universo escolar.

O cenário é uma sala de aula freqüentada por alunos do segundo ano do curso secundário. A porta apresenta sinais de que a fechadura foi arrombada, o quadro negro evidencia resquícios de giz da última aula, as paredes têm aspecto sujo, poluído por pichações, e tanto a mesa do professor como as carteiras da classe estão em péssimo estado de conservação.

Dentro deste ambiente de caos aflora o romance entre a aplicada estudante Rita e o aluno bad-boy Sinval, acima das diferenças e das intolerâncias, para falar ao coração dos adolescentes e resgatar a dimensão afetiva no ambiente escolar. O texto, escrito por Luiz Marfuz e Filinto Coelho, apresenta duas curvas que vão se entrelaçando à medida que o enredo se desenrola: o amor entre dois jovens e o amor pela escola.

Em paralelo, acontece um misto de negação e afirmação do afeto pelo colégio por parte de personagens como o idealista Raimundo, a descolada Mirinha, a insegura professora Célia, a sonsinha religiosa Das Dores e o rancoroso estudante Bactéria, o melhor amigo de Sinval.

Enquanto a história de amor cresce, o colégio definha e a violência aumenta. Carteiras são quebradas, vidros partidos, bebedouros destruídos e pias arrancadas. No portão, um assaltante rouba o relógio de Das Dores. Raimundo lê a notícia de que um menino de 12 anos morreu numa briga boba dentro de uma escola pública. E Bactéria se afunda nas drogas, sentindo-se cada vez mais sozinho, descuidado e ressentido.

Na reta final da história, a comportada Rita e o agressivo Sinval já não parecem mais como antes. Ela se mostra cada vez mais solta, com auto-estima elevada, preocupada em cuidar melhor de si mesma. Ele já não quer mais saber de destruir a escola, pois tudo no prédio lhe faz lembrar da menina que balançou seu coração. Enciumado e sem um rumo na vida, Bactéria transfere o seu ódio justamente para Sinval, o amigo do peito.

Num impulso de acabar com tudo, parte para uma violenta briga com o velho parceiro e começa a quebrar os móveis da sala de aula, numa seqüência de destruição e catarse. Os outros alunos retornam do recreio, apavorados. A diretora chega e ao ver Bactéria no chão ameaça expulsá-lo da escola.

A imagem dos móveis destruídos é o retrato do caos. A diretora chora. Um longo silêncio se instaura até que Sinval toma a iniciativa de tocar numa cadeira e liderar o início de uma reconstrução. Diante do impacto de uma forte desestruturação, todo o grupo (inclusive Bactéria) começa a compreender a importância de cuidar não apenas de um bem comum, mas também da preservação das relações.  

Pelo menos três argumentos justificam o sucesso de Cuida bem de mim: primeiro, o padrão de qualidade artística mantido pelas equipes que passam pelo espetáculo ao longo de uma década; segundo, a capacidade do projeto de aproximar as relações, facilitar o diálogo e estimular um conjunto de ações nas escolas (grêmios, grupos teatrais, mutirões e outras atividades que tiveram a experiência artística como linha condutora e deram novo ânimo a educadores que estavam a um passo de desistir); terceiro, a abordagem de um tema tão presente na memória afetiva de alunos e ex-alunos.

É possível reconhecer na encenação uma antiga professora, um colega da turma da bagunça no fundo da sala, a velha farda, as festinhas, a hora da merenda e a primeira paixão platônica pelo colega de turma. A peça agarra as pessoas pelo viés afetivo. O lema de que a porta de entrada do projeto é o afeto e o ponto de chegada é a cidadania se mostra essencial para o entendimento da via pela qual a montagem trafega, lançando-se sem medo no território da emoção.

Esse percurso se torna ainda mais forte na segunda versão, lançada em 2003. Há, nesse momento, um corte histórico que passa a dividir Cuida bem de mim em duas fases: a primeira, composta por artistas do circuito profissional do teatro baiano, e a segunda, quando começa a ser criada uma turma de alunos oriundos de escolas públicas para formar o Grupo de Teatro do Liceu.

Os jovens aprendizes passam por um longo e intensivo período de formação, equivalente a 18 meses de treinamento, e preservam a qualidade do projeto. A emoção natural da peça se soma às histórias de vida de seus novos atores, pobres e negros, revigorando o fôlego do espetáculo e dando ao conteúdo das cenas um novo traçado emocional.

Revisto e realimentado, Cuida bem de mim volta a cartaz com vários reajustes. Investe na estética da violência e num realismo cru, no sentido de expor visceralmente os problemas da vida escolar para estimular a reflexão, ao invés de propor alternativas de solução. Mas isto não significa uma desesperança. Sinaliza-se que é possível haver mudanças sem que, desta vez, o espetáculo seja o operador artístico delas para o público.

A seqüência final da destruição dos móveis passa a ter um ritmo sonoro tribal e um contorno ritualístico ao assinalar o tenso momento coletivo de perda total da racionalidade. O reggae, uma das marcas da versão de 1996, cede espaço para o rap, o funk e o hip hop, trazendo para a peça as pulsações de um tipo de música que se propõe a discutir a violência.

O figurino remodelado reflete as cores e a variedade de ornamentos e tecidos da escola pública. O recurso do grafismo e a possibilidade de interferência no dinamismo da peça são características do novo cenário, que preserva o contexto do anterior, porém se mostra mais radical e ousado.

Em sua trajetória de uma década em cartaz, Cuida bem de mim é visto por vários espectadores ilustres, a exemplo do reitor da Universidade da Paz, Pierre Weil, que, num depoimento comovido, diz ter presenciado um novo método de educação transdisciplinar por meio do teatro. Durante esse período, o elenco viaja pelo interior da Bahia e por cidades do Rio de Janeiro, Brasília e Recife, onde mantém suas ações educativas em escolas públicas.

O percurso inclui, ainda, a referência à iniciativa baiana em debates no II Congresso Ibero-Americano sobre Violência nas Escolas, em Belém, e na III Conferência Internacional sobre Violência nas Escolas, em Bordeaux, na França. No livro Cultivando vidas, desarmando violências, publicado pela Unesco em 2001, Cuida bem de mim é citado como um vitorioso exemplo brasileiro de iniciativa educacional.

Em 2007, porém, o agravamento de uma crise financeira no Liceu de Artes e Ofícios da Bahia e denúncias publicadas na imprensa local envolvendo a alta cúpula da instituição comprometem a continuidade do projeto artístico e pedagógico. Sem condições de permanecer em cartaz, o espetáculo sai de cena abruptamente, mas se consolida como um marco singular na memória do teatro baiano.

Ficha Técnica

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Fontes de pesquisa 9

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  • FRANCISCO, Severino. Fenômeno de arte-educação, Jornal de Brasília, Suplemento Civilização, Brasília, 04 set., 1999, p. 6.
  • MARFUZ, Luiz. Escola de Teatro da UFBA, Salvador, 08 ago. 2011. Entrevista a Marcos Uzel.
  • MORAES, Fabiana. A guerra dentro da escola. Jornal do Commercio, Caderno C, Recife, 12 mai, 2006, p. 5.
  • PROGRAMA do espetáculo Cuida Bem de Mim, Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, Salvador, Teatro Acbeu, ago., 2003.
  • PROGRAMA do espetáculo Cuida Bem de Mim, Liceu de Artes e Ofícios da Bahia, Salvador, Teatro Solar Boa Vista, out. 1996.
  • ROSSETTI, Fernando. Ba usa teatro contra depredação escolar. Folha de S. Paulo, Caderno Cotidiano, São Paulo, 02 dez., 1996, p. 3.10.
  • UZEL, Marcos. A noite do teatro baiano. Salvador: P55 Edições, 2010.
  • UZEL, Marcos. O poder do afeto. Correio da Bahia, Caderno Folha da Bahia, Salvador, 25 mai 2006, p. 1.
  • UZÊDA, Eduarda. Peça sensível e cidadã. A Tarde, Caderno 2, Salvador, 21 jul. 2006, p. 3.

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